The Servant

Joseph Losey / 1963



Quando, no genérico, a câmara filma um impecavelmente vestido Dirk Bogarde (Hugo) cruzando uma charmosa square londrina (a Royal Avenue, em Chelsea), julgamos estar a seguir um gentleman que volta no seu passo seguro a casa; mas logo depois ficamos a saber que este putativo senhor é um criado doméstico que se dirige a uma entrevista de emprego – e que o jovem esparramado no cadeirão de praia, gozando uma sesta após beber demasiadas cervejas ao almoço, que Hugo vai encontrar no seio da grande bagunça de uma casa, é o seu futuro senhor, Tony (James Fox). Não evitamos pensar: there’s something off here– e pensamos muito bem, pois esta é a primeira alusão às tensões de classe, às contradições entre a valia das personagens e as respectivas posições sociais, que o filme vai explorar.

Hugo é contractado e lidera a remodelação e ornamentação da casa, impressionando Tony não pelo zelo e agilidade com que dirige os trabalhos, mas por demonstrar um conhecimento inaudito de combinações elegantes e das últimas tendências no design de interiores – o criado é um esteta! Na ordem devida a uma casa de bem e nas noções de elegância, na gastronomia e no vinho, na postura e na segurança que exibe ao tratar de inconveniências ou agir em sociedade, o criado ensina e corrige o jovem gentlemanwho doesn’t have a clue– e o seu rigor e extrema competência são recebidos com surpresa mas fascínio por Tony, que do dia para a noite vê a sua casa ostentar o requinte e o bom gosto próprios da sua classe. Estabelecido, Tony convida a sua noiva, Susan (Wendy Craig), para jantar lá em casa – e assim chegamos ao momento charneira do filme.

O conhecimento apurado, as maneiras exímias, o esmero e a confiança, o sentido estético irrepreensível com que Hugo decorou a casa e executa o serviço ao jantar, são acolhidos por Susan com hilaridade e irritação: mas quem é que este julga que é? E a partir do momento em que Hugo se atreve a corrigi-la – whatever the subject, Susan doesn’t have a clue either– toda a precisão é tomada como uma forma de insolência. Para Susan, o criado demonstra falta de boas maneiras. Não acompanha a exibição de conhecimento com uma falsa, mas obrigatória, auto-depreciação (o quip irónico). É horrivelmente sério. Não sabe que a marca da sofisticação é zombar dos sabichões. Desconfia-se até que tem orgulho no seu trabalho. Tony é um tonto por demonstrar agrado: o criado que assume o papel de connoisseur deve ser acolhido com derrisão e escárnio. Um castiço, tão divertido: a criatura julga saber umas coisas, e, pobrezinho, julga que saber umas coisas interessa para alguma coisa. Que tolice! Não passa de um impertinente presumido que se esqueceu do essencial: o seu lugar. Necessita de uma severa lição. O desprezo e a crueldade espreitam, prontos a disparar. Quando Hugo interrompe uma perfeita cena romântica à lareira – no gira-discos, a primeira incursão da insinuante voz de Cleo Laine em All Gone– Susan começa o bullying. Ela descortina um cruzamento de papéis sociais que a deixa insegura. Hugo shouldn’t act like he knows better. Aos seus olhos, Hugo não ocupa apenas uma posição inferior; Hugo é inferior – e tornar ambígua esta relação é desafiar a autoridade. Susan reconhece por instinto o que Tony terá de ver para crer: que Hugo não se adequa ao, nem se conforma com o papel que lhe está socialmente destinado. A certa altura Tony tem de recordar à sua noiva que o criado, apesar de ser um criado, também é um ser humano.

Humilhado, Hugo usa a sua suposta irmã, Vera – Sarah Miles muito divertida a fazer papel de tonta histérica – para o auxiliar na inversão da dialética hegeliana entre senhor e escravo em que, a partir desse momento, o filme se transforma. (Cumprimentos a Harold Pinter.) O argumento trabalha as ansiedades e pesadelos gerados pela corrosão da velha, hierárquica e estanque ordem social. A vulgaridade da swinging London– vemos uma versão de Rock Me Baby pelo Davy Graham – irrompendo e corrompendo a elegância e grandeza do que deveriam ser exclusivos salões.

Tony cai menos na esparrela do que arma a si próprio uma cilada. A sedução, a manipulação, as maquinações de Hugo e Vera revelam-se armas eficazes pois Tony, aborrecido de morte pela sua convencional noiva, não resiste a saciar a curiosidade e participar no jogo perverso e hipnótico para o qual é desafiado. Ao despir o escudo de classe, ao permitir o encolhimento da distância que esta impõe, o senhor fica vulnerável aos seus escravos. Aqui o trabalho de câmara e a mise-en-scène são notáveis: Joseph Losey joga com o espectador o jogo erótico que os criados jogam com o seu senhor. As sequências e os planos não se reduzem a um engenhoso exercício técnico nem a música a indicar a acústica emocional de cada cena; a música cria uma atmosfera jocosa e sinistra e a forma – o lado plástico do filme – assume a narrativa. Os ângulos, as sombras, os objectos através dos quais as cenas são filmadas saturam o filme de tensão (homos)sexual e perversidade. Muito pouco é expressamente dito pelas personagens, mas os enquadramentos – por exemplo: o ascendente da sombra de Hugo nas escadas quando Tony e Susan descobrem a verdade, e o plano espelhado que se lhe segue – contam a história sem rodeios.

The Servant é uma obra-prima de artifício, de criatividade formal e contenção narrativa, que encerra e explora dentro de uma casa as tensões psicanalíticas e a luta marxista que à época se travava na rua. O filme termina com uma felliniana festa organizada por Hugo em casa de Tony. O domínio daquele sobre este é agora total. A própria Susan mostra-se impotente, incapaz de rejeitar a autoridade do criado, de se impor e inverter esta nova relação de forças. Hugo – que se vê a si mesmo como um gentleman’s gentleman, a servir um senhor que de gentleman só possui o título: I’m a gentleman’s gentleman and you’re no bloody gentleman– é o verdadeiro anfitrião e aplica trocista um pungente castigo. O servo tornou-se o senhor.

Pedro Ramires