O Rapaz e a Garça 

Hayao Miyazaki / 2023 



Fecemi la divina podestate, la somma sapienza e ‘l primo amore. Exilado de Florença, Dante lê esta frase sobre a porta para o outro mundo. É parte de uma inscrição mais longa, que vem no início do terceiro canto do Inferno. Refugiado na aldeia da sua mãe durante a guerra, Mahito apenas encontra no portal da torre as primeiras quatro palavras. Mas ele não repara na frase – foi para nós que Miyazaki a pôs lá.

Na sua divina comédia, Virgílio veste pele de garça velhaca. A entrada de Mahito no submundo não é acidental, mas solicitada pelo divino. Beatriz tem duplo nome, mas uma só essência. O inferno não é uma orgia de fogo e de dor, mas uma terra de compostagem. Os mortos são sombras sem cara que vagueiam nas águas e que, pelo alimento que uma Caronte de avental lhes traz, assumem uma forma globular pela qual reascendem à vida. Há um dólmen onde se supõe sepultado o inquilino original daquele mundo. No seu portão, velam-no pelicanos brancos, concebidos antes de outros seres mais imperfeitos que o Criador veio a preferir. O ciúme condenou-os a alimentarem-se das alminhas que emergem daquele oceano primordial e de serem por isso caçados como aves malditas.

O purgatório é o reino dos periquitos, criaturas viciosas e famintas, que por esses atributos chegaram a dominar a terra. Aqui, a guia de Mahito não é mais a garça, mas a sua jovem mãe, antes de o ter gerado e criado, antes de ter perecido num terrível incêndio durante a guerra. Depois da sua morte, é a irmã, tia do pequeno órfão, que o acolhe. Mas ele resiste. Acalenta a esperança de trazer a mãe de volta. O Mestre da Torre atrai-o ao seu além-mundo com essa promessa: ela espera-te, vem buscá-la. Entra.

“Fez-me o divino poder”. A frase que adorna o portal é chave. Os dois últimos níveis da comédia são dominados pela soberba. Mahito representa, contra ela, ‘l primo amore – o tema de todos os filmes de Miyazaki. O paraíso é domínio exclusivo do Criador. O genial tio-avô, autor daquele mundo, procura um sucessor. Agora que se aproxima a sua hora, apenas pode dar-lhe continuidade um seu descendente direto: Mahito. Lá fora, continua-se a matar e a morrer pelo Japão. Dizimam-se cidades inteiras, ensaia-se a destruição total. Muitos anos antes, o universo da Torre fora erguido como fuga a esse mundo corrompido. A alegoria acabou por absorver o seu criador e, cego de arrogância, pensou que ela era perfeita e eterna. Quando lhe estende a oferta, Mahito rejeita o divino poder. Tinha deixado o Japão apenas para resgatar a sua nova mãe. Quando o conseguiu, depois de escalar os três patamares celestes, escolheu voltar para a casa de família. Apesar de rasgado de sangue e de sofrimento, o mundo lá fora ainda era preferível ao paraíso estéril da Torre.
Quem sucede ao criador da Ghibli? “O rapaz e a garça” foi apresentado como o seu derradeiro filme, enquanto outro já se prepara. O mundo a que Miyazaki fugiu para se refugiar no cinema não estava longe do Japão de Mahito. O estúdio foi a sua torre e ele o seu mestre. Mas, por mim, a afinidade acaba aí. As suas histórias não se construíram de pedras tumulares. Bem o oposto. “Recuperai toda a esperança, vós que entrais”: se um portal se abrisse para os seus filmes, era a inscrição que eu encontraria. 

Pedro Leitão