Um Herói 

Asghard Farhadi / 2021



O carácter aparentemente contingente e aleatório da realidade nunca impediu os filósofos de criarem esses belos edifícios teóricos chamados sistemas morais. Embora tentem depois recapturar ou assinalar a complexidade do real de outras formas – são sistemas cheios de ramificações e cláusulas ad hoc – o objectivo do sistema é identificar princípios morais, critérios de acção suficientemente abstractos e universais, que sejam aplicáveis a todas as pessoas, em qualquer lugar e período histórico.  No período moderno, a própria questão moral por excelência – Como devemos agir?, que substituiu a questão Como devemos ser? – é uma questão desse tipo: sem tempo nem espaço.

O conceito de filme para adultos, a princípio também algo concreto que remetia para a pornografia, tornou-se abrangente e começou a acolher todos os filmes que abordam questões com as quais apenas um público adulto se debate. Um Herói é um filme para adultos no sentido em que mostra com clareza como na prática os sistemas morais de pouco nos servem: algo que a maioria dos adultos aprendeu à sua custa, e que a maioria dos não adultos – a quem aliás convém ensinar noções claras de Bem e de Mal – à sua custa aprenderá.

A confusão mental, a perplexidade que ao longo do filme vai progressivamente dominando Rahim Soltani é a da criança assustada e desesperada ao dar conta de que o equipamento ético que possui é insuficiente para responder às questões morais que lhe são colocadas. Enquanto espectador é aflitivo observar a inaptidão deste bondoso presidiário em precária, que leva ao desespero até quem o pretende ajudar. Quando um desapontado jornalista lhe atira “Ou você é muito esperto ou muito néscio” está a reconhecer a impotência e a ingenuidade do protagonista face às encrencas em que se meteu, mas também a incompetência da sociedade para lidar com um adulto que se guia por um código moral estupidamente simples, um adulto agonizado que só reencontra a paz quando é colocado num contexto onde esse código se pode sem ambiguidades aplicar.

Não sei se Um Herói é um grande filme. Há vários momentos que me parecem forçados, outros que não funcionam de todo (o confronto físico entre credor e devedor acima de todos), mesmo a história arrasta-se, é demasiado intrincada. No entanto é difícil, poucos minutos após sairmos do filme, não darmos por nós angustiados com a pouca fiabilidade da nossa própria bússola moral; sem ver com nitidez que a instabilidade dos campos magnéticos que a afectam transforma quase todas as decisões morais em frustrantes compromissos; e sem tomar consciência real de que o problema é irresolúvel: que qualquer decisão muda a configuração dos campos magnéticos que a informaram para uma combinação que não podemos prever à partida e que altera irremediavelmente o carácter da decisão já tomada, que o altera aos olhos de todos, inclusive de quem a toma.

É no fundo este desagrado e irritabilidade com a plasticidade do mundo e a ausência de controlo do ser humano sobre a sua esfera moral que nos leva a elaborar sistemas, mapas de cidades ficcionais, que nos fará procurar ad aeternum princípios que não existem, como idiotas à procura de orientações claras numa rua sem início nem fim. O filme de Asghar Farhadi ajuda-nos a encarar e a aceitar estas limitações. A viver com elas.

Pedro Ramires