Shivers 

David Cronenberg / 1975



Most fictions, including short stories, have their origin in the subconscious. Very often you can feel them arrive. It is an exquisite sensation. Nabokov called it ‘a throb’, Updike ‘a shiver’: the sense of pregnant arrest. The subconscious is putting you on notice: you have been brooding about something without knowing it.
Martin Amis - Inside story

De fumaça sem fogo e de promessas vãs estamos todos escaldados. Embora nunca o suficiente para fugirmos, sem hesitações, a um bom engodo. Faz parte da fragilidade da nossa condição. E uma das fraquezas mais humanas parece ser, desde há muito, pelo menos nas civilizações com temor pelo vazio, o desejo de morar num lugar que nos ofereça quase tudo. Qualquer que seja a década a que recuemos nos últimos cinquenta ou sessenta anos, encontraremos sempre, no novo centro ou na fronteira das cidades em crescimento, uma proliferação de empreendimentos em que a varanda, o campo de ténis, o restaurante, a clínica, o porteiro, o segurança prometem responder à nossa irrefreável vontade de varandas, campos de ténis, restaurantes, clínicas, porteiros, seguranças. Como se fosse possível domesticar o presente e o futuro em poucas centenas de metros quadrados. Nas Starliner Towers, onde decorre a trama principal de Shivers, os apartamentos foram desenhados por Mies Van der Rohe e têm uma elegância funcional que convida à fantasia. Contudo, a ambição dos que os cobiçam é a mesma que governa aqueles que anseiam morar num T2 de um qualquer Albufeira Residences. Encontrar o caminho mais curto e confortável para a felicidade. Ir de robe até à piscina.

Mas em nenhum lugar o sossego é completo ou permanente, por mais sólidas que sejam as paredes e por mais rigorosa que tenha sido a escolha dos vizinhos. Ao inevitável atrevimento dos outros temos ainda de somar a nossa própria natureza selvagem, há milhares de anos protegida por uma pele demasiado fina. E, neste caso, também de contar com o trabalho de um infatigável parasita gelatinoso que, como qualquer vilão que se preze, consegue prosperar graças a uma vida dupla. Às entidades financiadoras de projectos de investigação, ele é apresentado como um benevolente substituto de órgãos em falência, uma potencial alternativa a transplantes. Na verdade, graças à ambição desviante de Hobbes, um dos médicos desta história, o seu propósito é distinto: transformar o planeta numa orgia sem tréguas. Começando pelas Starliner Towers, um complexo onde afinal, como prometido, tudo de facto acontece. Fumaça e fogo.

Apartamento a apartamento, assoalhada a assoalhada, o parasita vai conquistando o seu território. Umas vezes por sua própria iniciativa, subindo pelos canos, entrando pelo ralo da banheira e penetrando nas suas vítimas; outras vezes, explorando o desejo dos convertidos, através de beijos e intimidades que lhe permitem passar de um corpo inflamado e insubmisso para um corpo ainda dominado por antigos e severos soberanos. Mulheres e homens assanhados percorrem corredores, batem às portas, entram no elevador, descem ao subsolo. Assustam os que ainda não foram tomados por aquela lascívia sem travão. À medida que o filme avança, estes são cada vez menos. Até que, perto do fim, só um homem persiste intocado. Ninguém apanha o médico Roger St. Luc facilmente. Desde o momento em que o vemos resistir, sem nenhuma perturbação, ao olhar sugestivo que a enfermeira da sua clínica lhe dirige, enquanto se despe e se volta a vestir – uma coreografia de final de turno que coincide com a revelação, num telefonema, do verdadeiro desígnio do parasita –, que sabemos que o doutor dará luta às diversas formas de tentação. Não apenas às propostas mais ou menos subtis da enfermeira Forsythe mas também às abordagens agressivas dos moradores, entretanto transformados em insaciáveis criaturas que dirigem os seus apetites sexuais para todo o lado, sem condições nem limites. Quando finalmente Roger St. Luc é apanhado, a violência suspende-se. Estão agora todos no mesmo barco sujo e libidinoso. Para lá do bem e do mal. E uma espécie de paz instala-se. Uma paz estranha, em que nada nem ninguém se distingue. Será essa estranheza um indício da perda de algo fundamental? Ou, tal como sugere o sonho que Forsythe havia contado a Roger, talvez seja apenas uma questão de tempo até que o incómodo que sentimos, perante aquele modo tão abrangente e plano de entender o desejo, se dissipe? Nesse sonho, a enfermeira faz amor com um moribundo repugnante. A princípio, ela experimenta um desconforto, uma repulsa por aquele corpo pestilento e velho. Mas o homem convence-a de que o erotismo e o sexo estão em todo o lado. Sem nenhuma excepção. Que até morrer é um acto de erotismo. E tudo nela muda e se expande. Roger St. Luc ouve o relato de Forsythe sem proferir uma palavra, desconfiado. Como seria possível aceitar aquela presença total, aquele império tão vasto, se mesmo ali, nos escassos centímetros entre ele (loiro e aprumado) e ela (bela e insinuante) o erotismo não parecia estar? E podendo a morte ser adiada, Roger luta e foge. Porém, a máxima do moribundo atravessará, como um fantasma, o resto do filme. O feio e o belo confundem-se. O medo tanto nos aparece como um valioso instrumento de sobrevivência e de combate, como uma forma de solidão. Torna-se impossível saber qual dessas duas vertentes é dominante, e a dúvida passa a funcionar, a partir daquela cena, como o principal elemento de terror de Shivers. E nem sequer podemos confiar na nossa alegada imunidade enquanto espectadores de cinema. Quando dezenas de carros, de luzes acesas, abandonam a garagem das Starliner Towers, cresce em nós a suspeita de que alguns deles não irão demorar mais de seis noites a chegar a nossas casas.

Daniel Marques Pinto