Kapo 

Gillo Pontecorvo / 1960



É quinta-feira à tarde de um dia soalheiro na província. Soa a campainha e desengata a correria colectiva para as salas de aula. Que som estridente e gutural, esse, o das escolas secundárias, com os agigantados espaços vazios a fazerem ecoar, em simultâneo, o toque das campainhas – entretanto, abolidas em favor da música clássica –, os sapatos em marcha e os bramidos de uma adolescência à flor da pele. Que cheiro esse, dos corpos transpirados, agora refastelados nas duras cadeiras, do suor causado pelas pesadas mochilas carregadas às costas. Minha cabeça estremece, pois, o coração também, e há uma certa bebedeira no olhar. Estamos no auditório do bloco B, mais fresco, mais largo, as persianas já estão corridas ou o professor pede para baixá-las. Está escuro. Ao ler a proposta de Bergala sobre a hipótese cinema (que, muito espontaneamente, me atirou para a interessante expressão de Badiou, a hipótese comunista) – na qual se retoma, como que por alavanca, o texto em que Daney condena o travelling de Kapo no momento da morte de Terese (Emmanuelle Rivas), quando esta se atira contra a vedação de um campo de concentração –, não pude deixar de recordar essas aulas de História que eram, afinal, sessões de cinema; não pude deixar de recordar esse professor que era, afinal, um passeur. Ainda que não o soubesse, ainda que não o quisesse ser. E não é que se tenha propriamente ensinado a fazer filmes nessas aulas (longe disso) mas o cinema irrompia pela nossa tarde, pela nossa vida, sem pedir licença, e escoava no tempo como o suor das nossas mãos. E, a dada altura, tornara-se um hábito. É quinta-feira à tarde. Não, claro, sem a vulgarização e desprezo expectável dos alheios por aquilo que se poderia aprender ao ver um filme. Assim, aquelas reuniões eram aparentemente e só provocadas por uma certa preguiça (o que, já de si, não seria totalmente desacertado como nos fizeram querer crer) – do professor, e com a devida condescendência dos alunos. Parece-me evidente, como também deixa entrever Bergala, que o cinema não deveria e não deve estar remetido a uma única área disciplinar, a um ou outro estudante das áreas artísticas. Uma pequena contextualização histórica (afinal, tinha que servir, de algum modo, a disciplina em causa): sobre a 2º Guerra Mundial, vimos A Lista de Schindler; sobre a grande depressão na América, vimos As Vinhas da Ira; sobre a pintura flamenga, vimos A Rapariga com Brinco de Pérola; e, já não me lembro a que propósito, pois creio que o período histórico correspondente não fazia parte do currículo, vimos também O Nome da Rosa. Porque sim. Teremos certamente visto outros. Havia, como se percebe, uma certa audácia em mostrar filmes porque sim a um grupo de adolescentes que não estava propriamente interessado em vê-los, numa instituição que também não estava propriamente interessada em exibi-los. Eu não era excepção. Não se julgue que era com particular entusiasmo que via estes filmes; não sabia ainda a falta que me fariam. Acolhia-os, simplesmente, com a leviandade e a permeabilidade com que se acolhe qualquer outra coisa trivial que nos acontece durante a adolescência. Não havia grandes discussões. O professor dizia, e bem, e sem grande ou qualquer domínio da “linguagem cinematográfica”, o que lhe aprouvera no momento. Não me lembro que fossem coisas importantes. Não tinha matéria de interesse para a avaliação. Era porque sim; e isso, sim, era importante. Não eram sessões de cinema anunciadas e tudo isso garantira uma certa aura de clandestinidade àquelas aulas: um passador de filmes. Nunca li o Steinbeck mas nunca mais me esqueci dos rostos da família Joad, da carrinha apinhada e atabalhoada a atravessar a América, da exploração, da pobreza, mas também da resistência, a que, mais tarde, se viriam a juntar outros rostos, como os de Migrant Mother, de Dorothea Lange. Eu não sabia mas começara-me a formar ali, a reconhecer, como Daney, a impossibilidade de conciliação com aqueles a quem o travelling de Kapo não inquietara. E isso graças a uma única oferenda: a hipótese cinema.

Alexandra João Martins