Wild at Heart 

David Lynch / 1990



Durante uma vida normal, sem desgraças prematuras, as cobras mudam de pele algumas dezenas de vezes. E se, para dar passagem às presas de grande porte que vão engolindo pelo caminho, a elasticidade dos tecidos não for suficiente, o coração delas pode deslocar-se um pouco dentro do corpo; ao contrário do nosso, que permanece eternamente no mesmo sítio, enquanto nos movemos pelo mundo em busca das formas mais empolgantes de o desassossegarmos. Sailor Ripley é como nós. Tem um coração que bate num só lugar e um único casaco. Uma única pele de cobra. Mas Sailor Ripley não é bem como nós. Tem um casaco com muito mais pinta e um coração selvagem que resiste a tudo. Sailor carrega no peito um músculo preparado para todas as armadilhas, capaz de sobreviver às tribulações de várias famílias de doidos, e a duas longas penas que o levam à cadeia e o afastam, por duas vezes, da sua namorada, Lula Fortune. E se há coisa que o filme nos mostra é como deve ser difícil estar longe de Lula. São incontáveis as cenas tórridas em que os dois se cruzam. No carro, na cama, nos bares de estrada. Não há apenas química entre eles, há uma série de incêndios prontos a deflagrar em cada toque, em cada beijo, no mais pequeno intervalo das memórias e dos segredos que cada um tem para contar. Por Lula, um homem anda à porrada na noite, interrompe um concerto de speed metal para cantar uma canção de Elvis. Faz o que tem a fazer. Faz o que não deve fazer.

Se Lula tem um corpo vivo como uma chama, uma presença carnal que faz parte deste mundo, que nunca se desliga dele, a sua cabeça anda com frequência nas nuvens, num céu carregado de fantasia e trauma. Lula é malandra, sábia e ingénua. Uma mulher que descobre naquele amor, naquela aventura de mil cigarros e um descapotável, um modo de fugir da infância sem desembocar demasiado cedo na vida adulta para onde, desde sempre, todos os que a deveriam ter protegido a tentaram empurrar com violência. Aos vinte anos, ela já sabe que as coisas nunca são como deveriam ser, que sem uma chávena e meia de desvario ninguém aguenta. E sabe também - ou vai aprendendo - que o carro que Sailor encosta, a meio da noite, para que eles possam tentar prestar auxílio aos feridos de um acidente (spoiler: fracassam), é o mesmo, exactamente o mesmo, que ele pára junto à berma, de rádio ligado e ao sol, antes de encetarem uma espécie de dança eufórica na planície (uma empreitada que os dois completam com sucesso, na nossa opinião). Nenhuma experiência pode ser isolada por completo de qualquer outra. Ainda menos numa road trip tão intensa, no meio de um quotidiano instável que ambos aceitam e procuram juntos.

Naturalmente, a mãe dela desaprova o rapaz e está contra aquele conúbio, apesar das razões serem mais tortuosas do que as que costumam surgir nos romances do início do século XIX. Não estamos metidos num livro de Jane Austen, continuamos a avançar num filme de Lynch e, portanto, também numa Terra de Oz bastante peculiar, povoada de freaks e governada por bizarrias e por desejos que não têm nome. Muito mais do que proteger a sua filha, Marietta quer salvar a sua própria pele. Só que nem para esse ofício ela tem engenho, hesitando entre a crueldade e a compaixão, e incapaz de escolher um dos dois homens que a ajudam a perseguir o par em fuga, e que em simultâneo competem pela atenção dela, recorrendo a estratégias que nunca estiveram ao alcance das personagens de Austen, mas que não são difíceis de elaborar dentro de um filme moderadamente estouvado de Lynch: escondendo-se em hotéis quase vazios, telefonando em sussurro de onde calha, encomendando a morte a um pequeno circo de assassinos perversos.

No fim, após muitos quilómetros e estações, tudo termina mal. E depois bem, graças à intervenção de uma Bruxa Boa que, na hora certa, surge no céu para advertir Sailor e aconselhá-lo a não fugir do amor. Uma recomendação que ele cumpre, correndo para Lula por cima dos carros parados em fila, combatendo o medo e o trânsito, a única forma de se chegar a tempo a algum lado.

Daniel Marques Pinto