L’Eclisse   

Michelangelo Antonioni / 1962



Vorrei non amarti. O amarti molto meglio.

A mente romântica mais empedernida nunca poderá buscar uma visão do amor em L’Eclisse. Corrigindo: a única visão é aquela que o fenómeno natural anuncia, a do reverso da luz, traduzido em ocultação ou suspensão do sentimento, como Antonioni postulou num famoso passo do seu diário por ocasião da observação de um eclipse em Florença:

Silenzio diverso da tutti gli altri silenzi. Luce terrea, diversa da tutte le altre luci. E poi buio, immobilità totale. Tutto quello che riesco a pensare è che durante l’eclisse probabilmente si fermeranno anche i sentimenti.

Toda esta ideia, legítima, evolui então para a questão filosófica que importa, à boleia de uma citação do poeta galês Dylan Thomas. A não haver certeza alguma de não amarmos bem, poderemos saber como não amar de todo?

L’Eclisse, visto pela terceira ou quarta vez, vividos os anos formativos da adolescência e da juventude, tem o condão de nos enganar ainda. Entre o fascínio e o tédio venha o cineasta e não nos dê escolha. Mas que escolha poderia ser essa? A do apego às opções estéticas do terceiro acto dessa trilogia que nos diz ao que vem – essa incomunicabilidade tornada bandeira, palavra obrigatória em textos críticos? Ou a do estudo individual de uma alienação colectiva, trabalhando nas sombras que o chiaroscuro permite as crises existenciais da sociedade hodierna?

Revejo o belo rosto de Delon e – mesmo adorando Delon – já não me apaixono por Piero, criatura implacável nascida e criada na grande selva capitalista. A Bolsa, microcosmos de uma Itália pós-guerra em recrudescimento económico, é o espelho da claustrofobia e do cinismo aplicados ao mercado financeiro. Na voragem que o impulso do lucro traz consigo, a única certeza é a de que o risco é tudo, mesmo quando tudo se arrisca. E quando nada se faz, como durante o minuto de silêncio por um colega caído, ficamos a saber que o mercado, essa entidade superior e omnipotente, não espera por ninguém e que os telefones não param de tocar. Como os corações não param de bater, mas apenas porque sim.

Vittoria, a jovem burguesa benestante e independente, continua vagamente sensual e solitária, mas já pouco nela me seduz (antecipo a neurose de Il Deserto Rosso e isso perturba-me). A não ser o traço carregado de um eyeliner sem mácula, e o decote milimetricamente discreto daquela blusa branca, tudo nela é insegurança, volatilidade, equívoco – mesmo o enamoramento por Piero. Perenemente ausente da sua própria história (Antonioni não quer narrativa, apenas gente à deriva), não chega a ser amante ou sequer intelectual de pleno direito. É personagem que tudo tem mas que nada sabe ou não quer saber – repete ad nauseam a frase “Non lo so” –, acometida de um spleen que, a julgar pelo seu impecável cabelo de cama, poderia ser vivido inteiramente ali, num leito onde todas as ideias e as emoções se dissolvam. Mas Vittoria gosta de caminhar sem rumo e essa talvez seja a grande tragédia (ontologicamente falando) e o pequeno consolo que a levam a não querer ir mais longe na descoberta de si e do Outro. O que é Piero, inquieto e viciante como o dinheiro, senão uma versão masculina do seu eu alienado? Duas pessoas que não se encontram, mesmo quando estão frente a frente, não estarão condenadas a tentar e a não alcançar o que quer que seja?

Não há mente romântica que com eles se identifique, pois não há busca, ainda que inglória, de absolutos. Não há Novalis nem flores azuis nem montanhas. Apenas a lembrança fugidia de um romance de Moravia, adequadamente intitulado La Noia (1960). E apenas uma enorme coluna entre um homem e uma mulher, construindo ausência(s) e impossibilidade(s); ou o vidro de uma porta através do qual um beijo é só um beijo é só um beijo. Imaterial, de resto, porque os lábios não se colam verdadeiramente, as mãos tocam-se por segundos somente e as promessas, pressentimos, não se cumprirão.

Ci vediamo domani? E dopodomani? E stasera?

Os últimos minutos, os mesmos que poética e conceptualmente nos oferece Antonioni como bónus de um vazio que se tenta interpretar, misto de paisagem lunar e urbanidade amorfa, são belos – e desconcertantes – porque nos dizem, sem palavras, aquilo que nenhuma personagem produz: presença. O bairro EUR revisitado em geometrias finitas e tempos longos, o vento nas ramagens, um pedaço de madeira boiando num contentor, uma longa avenida sem ninguém que a percorra a desoras, uma grande ilusão. L’Eclisse é sobre um verão quente em Roma servido frio (Antonioni plasma aqui o facto científico: durante um eclipse, escuridão oblige, a temperatura diminui), com a contenção austera da linguagem fotográfica e a amplitude de um abismo do qual não se conhece o fundo. E que bem tudo isto, sessenta anos volvidos, se encaixa no nosso tempo. Capolavoro.

Cláudia Coimbra