Jules et Jim 

François Truffaut / 1962



Kathe gagnait, en partant avant le signal.

De uma estante de alfarrabista em fim de tarde espreita uma publicação de 1912, La Semaine de Suzette, cuja primeira página se enche de vinhetas sobre o quotidiano de uma jovem da Belle Époque. Ao título Trop Curieuse junta-se a premissa feminista Elle veut tout voir, tout entendre, tout savoir. 1912 não está ali por acaso: é o ano em que a acção de Jules et Jim tem início. E esta jeune fille que se outorga o direito a saber, senão tudo, ao menos alguma coisa, tem em outras mulheres do mesmo período modelos para emulação futura. Dou por mim a evocar o pincel de Rosa Bonheur, a pena de Colette, as composições melancólicas de Lili Boulanger, os diários picantes de Liane de Pougy (essa “grande horizontale”), as aventuras de Adèle Blanc-Sec (mulher-detective ficcionada, maravilhosa invenção de Tardi), os filmes das pioneiras da sétima arte Alice Guy e Germaine Dulac. Evoco estas figuras como poderia evocar outras, igualmente emancipadas. Entre elas, uma imagem em fuga chamada Catherine.

À terceira ou quarta vez que visitamos Jules et Jim no grande ecrã já não é a possibilidade de um ménage utópico que nos comove – como comovia, de resto, aos vinte anos. É uma outra coisa, que Truffaut bem pode ter ido buscar a Beauvoir quando esta afirma que não lhe interessa tanto a felicidade do indivíduo quanto a sua liberdade (Le Deuxiéme Sexe, 1949). Tudo isto poderá explicar o facto – exposto, aliás, em entrevista – de muitos dos seus filmes começarem em tom ligeiramente humorístico para desaguarem, por fim, em desoladora tristeza.

Truffaut, sabe-se, apaixonou-se de tal modo pela escrita autobiográfica de Henri-Pierre Roché (ele sim, um verdadeiro filho da Belle Époque) que se decidiu a adaptar também o seu segundo romance, Les Deux Anglaises et le Continent – outro novelo amoroso a três, com um delicioso Jean-Pierre Léaud à mercê dos (des)encantos de duas irmãs. Essa relação visceral com a literatura – bem como a admiração pelo estilo de Roché – levou-o a ver em Jules et Jim uma ponte de diálogo, à partida anacrónico e improvável, entre a geração de uma grande época à beira do abismo – a Grande Guerra – e a sua geração de sessenta, com outras guerras às costas e novos sonhos por vir. A década que culminaria naquele Maio revolucionário feito cometa atravessando Paris e na criação do Movimento pela Libertação das Mulheres, consequência natural de inquietações sociológicas que Catherine subscreveria.

O que representa Catherine para mim e para Truffaut pode não ser a mesma coisa. Não há aqui comunhão absoluta de almas; e rever Jules et Jim na maturidade faz-me querer navegar para lá da superlativa fotografia de Raoul Coutard ou da mítica banda sonora de Georges Delerue, demasiado encantatórias. É sa façon d’aimer a razão de ser deste filme, uma forma de explorar o universo – como Jules tenta explicar – que só décadas volvidas abalaria os alicerces do amor dito convencional: o monogâmico, o instituído, o hipócrita.

O que une verdadeiramente o prussiano Jules e o francês Jim? Será a amizade que antecede o tourbillon de la vie e o deslumbramento, a cumplicidade com nuances de homoerotismo (como defende alguma crítica queer recente)? Mais do que isso: a obsessão por um ideal, um conceito. Uma nouvelle vague. Catherine como busto antigo e intemporal, estátua de sorriso arcaico magnético, que ambos encontram antes mesmo de a conhecerem – e que prometem (per)seguir, correndo o perigo da aniquilação. Catherine como pedra sem deixar de ser água, personificando Ondina nos mergulhos improvisados ao longo do filme, habitando o seu domínio.

Seremos capazes de explicar, sem ela, a paixão sem limites, a capacidade de se amar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo, a vivência pouco ortodoxa e violenta (porque intensa) do amor visto como droga e tormento? Ou capazes de explicar, com ela, a sobrevivência possível depois da dúvida e do ciúme? Depois do jogo da renúncia e do desejo, um jogo perigoso cujos riscos Catherine, trop curieuse, parece não compreender? Ela que, conhecendo-se bem, não quer ser compreendida. Enigma.

Mas depois, claro, vem a sensualidade feminina como transgressão, o prazer sem amarras que tanto assustou os censores, o slogan Jouissons sans entraves! esparramado na tela sem lá estar, a libertação do espartilho físico e moral. E a ideia, hélas, de que liberdade a mais (numa mulher, acrescente-se) é passível de punição, sobretudo quando filme e romance sugerem uma emasculação progressiva dos dois amigos.

C’est Kathe qui choisissait et qui prenait ses amants bien plus qu’elle n’était prise par eux.

Alain Badiou, filósofo do nosso tempo, diz-nos em Éloge de l’Amour (2019) que urge reinventar o risco e a aventura. Fazendo-o a toda a hora, avant la lettre e avant les autres, ignorando leis e códigos que lhe são inatamente estranhos (para ela, como para Truffaut, infidelidade não constitui falha moral) Catherine reinventa as regras do mundo: a começar na ponte da Gare du Nord, em que, disfarçada de homem, se lança na corrida antes do sinal de partida; para acabar no retrato libertário (não libertino) de uma relação a três (ocasionalmente a quatro e a cinco…) que ela governa sem oposição, indo ao encontro de modos alternativos de viver o amor e o sexo. Modos outrora subterrâneos assomando, finalmente, à superfície de uma sociedade em convulsão.

Catherine perde a sua aposta. Ou será que não, totalmente? No mais idílico cenário, na paisagem mais plácida, a morte constitui-se também personagem. E é isso que talvez mais seduza. Um clássico: eros e thanatos servidos de bandeja. Não escapamos à guerra de 14-18, pontualmente rememorada em imagens de arquivo, como não escapamos aos pensamentos destrutivos/suicidas de Catherine, aos seus lábios de sangue, à referência certeira a Pentesileia e Aquiles (Jim eût voulu mourir de Kathe). Não escapamos a noites de despedida (que nunca o são) como se de exéquias se tratassem, como se os amantes já estivessem mortos (ainda não), sem outro destino que não seja um lânguido esquecimento. Como se a morte não fosse mais do que um inevitável fruit d’amour, prolongando êxtases passados. Parece-nos doce a provocação.

Beauvoir estará certa: a haver receita infalível para se ser feliz ela não se encontra aqui. Jules et Jim é outra matéria: um mapa visual, sensorial, poético para o exercício livre – mesmo que falhado – da individualidade moderna. Sendo um filme de ontem não deixa de ser um filme para amanhã, como diria Truffaut. E nesse desígnio, é também – sobretudo – um acto de amor.

Cláudia Coimbra