Hors-Saison
Stéphane Brizé / 2024
Yet nothing can to nothing fall,
Nor any place be empty quite,
Therefore I think my breast hath all
Those pieces still, though they be not unite.
[“The Broken Heart” (excerto) l John Donne]
Nor any place be empty quite,
Therefore I think my breast hath all
Those pieces still, though they be not unite.
[“The Broken Heart” (excerto) l John Donne]
Um dia perguntei-lhe porque deixara de escrever. Respondeu, lacónico, que o acto da escrita não era suficiente para mitigar a saudade, a distância, o desejo. Sensação de coisa partida, perdida. Irrecuperável. Porque o desejo não se cumpre na página em branco ou nas insónias que nos acompanham, insidiosas – mesmo quando achamos que outra pessoa nos fará feliz. O desejo cumpre-se no corpo, debatendo-se entre almas que mais não fazem do que buscar-se continuamente. Que se afastam e se perdem. E que depois, do nada, regressam.
O acaso nada tem a ver com isto, diz Alice no novo filme de Stéphane Brizé. E talvez ela tenha aportado na península de Quiberon doze anos antes deste reencontro com Mathieu antecipando que ele ali daria à costa um dia mais tarde. Como se a vida pudesse ser calculada com tal precisão. Como se os astros obedecessem à mais pequena ilusão ou capricho. Como se ela, enfim, qual rocha junto à falésia agreste, tivesse sempre estado à espera desse momento. Sempre, como quem diz: desde que ele a trocou por outra mulher, outra estrada, desaparecendo da linha de horizonte.
Brizé toca nessa ferida um pouco como E. M. Forster expõe personagens àquilo que denomina “the muddle of life”: complexa teia de questões e circunstâncias para as quais não se obtêm respostas objectivas ou que, no limite, auspiciam futuros incertos, obrigando-nos a tomar decisões enquanto sofremos as agruras da hesitação ou da falta de coragem. No fundo, o equivalente forsteriano a uma crise existencial, plasmada com subtileza na cena em que Mathieu, em zoom out, nada numa piscina sem que os seus membros o conduzam a lado algum, simultaneamente em movimento e dele ausente, por força contrária da água. Ou na cena em que – desencontro efémero com o real – Alice, perdida em rêverie, dedilha sem pressa as mesmas notas no piano, estranhando o seu país de maravilhas: a casa, o trabalho, o marido, a filha.
O sonho intromete-se nos pequenos abismos do quotidiano e trai um passado que se julgava irremediavelmente lá atrás. O ambiente asséptico do resort de talassoterapia onde Mathieu se submete à cura de um episódio depressivo não lhe dá respostas nem tampouco o questiona. Será preciso uma conversa, doce mas tensa, à volta de um chá para se perceber que (quase) tudo vai mal no tudo que, aparentemente, corre bem.
Dois amantes manqués, frustrados mais do que resignados, frágeis perante a aventura, são meio caminho andado para aquilo que sabemos. Alice confronta Mathieu; Mathieu faz o seu mea culpa. Nos passeios pela praia deserta – uma forma de expiação – ela desvenda-se mulher de inúmeros falhanços, o maior de todos a perda daquele homem que a ela agora retorna. Como marés em caprichosa cadência. O realinhamento da paixão, tão aguardado, não nos cega porque pouco mais nos promete. Somos todos adultos, solitários à nossa maneira. E a letra da canção que Vincent Delerm cria para o filme concorre para o estabelecimento de um não compromisso: ni avec toi ni sans toi. Mathieu, que inspira o olhar empático do espectador mesmo nas suas pequenas manias, tem em si a crueldade crónica dos que não sabem ser amados (Tu prends, tu jettes, tu parts. – sussurra-lhe Alice); ainda que tente, como os versos de Donne ilustram, ver inteireza nos pedaços desunidos de um coração à deriva naquele mar inclemente da costa oeste. Porque, de todas as obrigações morais a que ambos estão sujeitos, é necessário se quitter comme il faut. Mais metafísica e menos melodrama, portanto.
Não sei se o amor entre os dois é para outra vida; sei que a vida entre nós do título português sugere um obstáculo, parecendo espoletar a todo o custo mecanismos de desamor (consultem-se os proverbiais e sempre actuais Remedia Amoris de Ovídio) aos quais se resiste como se pode – se se amar verdadeiramente.
Uma paixão hors-saison é, felizmente, livre de (voltar a) acontecer fora de época, sem limites de tempo. E talvez por isso nos pareça irónica e pouco credível a promessa que Alice busca em Mathieu: a de não regressar, a de não estar disposto – também ele, sobretudo ele – a deitar tudo (aquele tout que não corre si bien) por terra. Um belo apontamento de psicologia inversa. Porque cremos que não se perderão de vista, mesmo que não se escrevam. Mathieu poderá não mais pisar solo bretão porque Alice, simplesmente, esperá-lo-á noutro lugar.
Cláudia Coimbra