Conte d’Hiver    

Éric Rohmer / 1992



Ghosts and lovers/They will haunt you for a while.
[Marissa Nadler]

Há um momento em Conte d’Hiver que dita o rumo de todo o filme. Testemunhamo-lo minutos após o início, quando ainda estamos, tal como a protagonista Félicie, embriagados de Verão. Rohmer filma um idílio amoroso que antecipamos fugaz – e aí nos enganamos – vivido na intensa fulguração dos dias longos e quentes, feitos de intimidade ao sol e ao sal. Corpos nus, leves de espírito e pesados de desejo. Corpos livres, na praia como na cama, de dois jovens com a vida inteira por escrever. O momento de que falo surge na sequência deste poético prólogo, tributo rohmeriano às afinidades electivas, à pureza da atracção, ao raro encontro de almas que – suspeitamos – hão-de perder-se de vista. Quem nunca entrou num comboio exausto/a de cansaço e de paixão que atire a primeira pedra. É desse momento que falo: aquele em que Félicie parece ter cristalizado a sua própria narrativa, aquele do qual se mantém refém. Sentada, perdida em abstracções líricas, carruagem já em andamento. Olhando através da janela o que a paisagem lhe devolve: esta é, afinal, como em todos os contos, uma viagem interior.

Depressa ficamos a saber que, à conta de um endereço mal escrito (ou mal ditado, para sermos precisos) os dois amantes se perdem efectivamente um do outro; e que poucos anos depois encontramos a jovem com uma criança nos braços, fruto dessa ligação estival. Cremos então que Félicie (re)vive esse endless summer não importa em que estação. Como nos diz a canção, “the seasons have changed from the present to past”. Isto podia ser trágico, mas não. É certo que o Inverno é penoso, vivido entre demasiada roupa, demasiado frio, demasiados céus cinzentos, cruzamento de rotinas e desencanto. Penoso por vermos esta mulher dividida entre pretendentes que, verdadeiramente, não deseja. Aos quais, verdadeiramente, não se entrega. Que estão ali para preencher um qualquer vazio. Não o do seu catolicismo inexistente (apesar daquela epifania na catedral de Nevers) ou o da ambição profissional. Mas um vazio emocional que – paradoxo a quanto obrigas – está repleto de uma coisa fundamental: esperança. A certa altura diz ela a um seu namorado: T’as peut-être raison, j’ai peut-être que très peu de chances de le retrouver (…) mais ce n’est pas une raison pour que je renonce.

Enquanto Loïc se perde em considerações sobre a inutilidade da crença na metempsicose, Félicie acredita na ciência do acaso. Levou-a até Charles em tempos, há-de levá-la até ele de novo. Ela, que é filmada sempre em movimento (excepto em breves instantes domésticos ou quando assiste a uma peça de teatro – The Winter’s Tale de Shakespeare, nem de propósito), caminha pelas ruas da cidade, percorre-a de metro, autocarro e comboio, deixando-se habitar pela sombra-assombração desse amor interrompido. Porque só o fardo dessa sombra, que ela constantemente acarinha, a pode fazer estacar, perplexa, no meio de um mercado ao ar livre, depois de segundos intermináveis a (per)seguir por entre a multidão um vulto que julga ser o de Charles. Quand je suis à Paris, je sais que j’ai une toute petite chance de le retrouver, et ça m’obsède. (Que esse vulto seja, de facto, o homem em causa é algo que o espectador tem direito a perguntar-se, dado que, como veremos, o sujeito não anda longe.)

A premissa é a de que a possibilidade de amor verdadeiro, ou de amor tout court, se terá esgotado em outro que não os que a rodeiam. E nele vive ainda, por mais inverosímil que seja a concretização de um reencontro. Entre o intelectual e urbano Loïc e o pragmático cabeleireiro Maxence que a pretende afundar na província, Félicie escolhe não escolher (culpa de Pascal, filósofo incontornável na cinematografia de Rohmer e cujo famoso “pari” Loïc invoca), agarrando-se a uma demanda a um tempo ingénua e sábia: si je le retrouve ça sera une chose tellement… une joie tellement grande, que je veux bien donner ma vie pour ça.

Tal demanda, que não sendo a do Santo Graal aproxima, ainda assim, Félicie dos êxtases de um cavaleiro arturiano, passa por tornar uma visão passageira ou transitória em símbolo de infinito ou de absoluto. Charles é esse símbolo, transcendendo a matéria do quotidiano no altar em que ela lhe presta devoção. O seu estado é o de uma perene praesentia in absentia, consubstanciada na fotografia que vemos no quarto da filha.  Correndo o risco de ser tudo menos feliz (traindo, portanto, a etimologia do seu próprio nome), pressentimos que, em Félicie, todos os caminhos vão dar a um passado de sublimação e que por esse motivo o presente e o futuro são vividos em modo sado-masoquista. A sua errância assim o exige. E damos connosco a pensar que esta é a história de uma perda inevitável, a ser tratada como fait accompli. Mas Rohmer, ardiloso, diz-nos que os contos se fecham com uma certa nota de optimismo. E quando por fim reencontramos, par hasard, o esquivo Charles – livre, de sorriso aberto e exibindo a desarmante beleza de outrora – somos todos a Félicie (je pleure de joie) que já fomos ou que seremos um dia. E acreditamos muito que, apesar de tudo, viver de esperança não é o mesmo que viver de ilusões.

Cláudia Coimbra