Os Faroleiros 

Maurice Mariaud / 1922



O sr. Raul dirá mais tarde que foi durante a sua juventude, quando primeiro viu os “filmes de arte” da casa Gaumont, que lhe veio o sonho de fazer cinema. Nos anos seguintes, viaja pelas Américas e pela Europa. Quando volta ao Porto, as fitas não estão nos seus planos. Trabalha com jornais e com cartazes de reclame, e com bastante proveito o faz. A sua empresa expande-se. Tem por clientes algumas das maiores fábricas do Norte. E um dia, sem esperar, o cinema bate-lhe à porta.

Eram dois pedreiros espanhóis. Queriam anunciar os seus préstimos como reparadores de telhados, serviço que executam sem recorrer a cordas ou andaimes; usam apenas as próprias mãos para escalar as empenas dos edifícios. O sr. Raul ouve a proposta e imediatamente na sua mente ferve uma ideia fantástica. Subiriam à torre mais alta da cidade e ele filmaria a proeza. Pelo reclame ao produto que lá se incluiria e pela extraordinária façanha dos acrobatas, o filme seria um notável acontecimento. E tal como o pensou, melhor o fez. Nunca se viu uma multidão tão grande no centro da cidade. As câmaras da Invicta, a principal casa cinematográfica do país, registaram a escalada dos dois intrépidos alpinistas. Chegados ao topo, e como o sr. Raul contratara aquela campanha com uma marca de bolachas, tomaram chá no alto da torre, por entre as nuvens. E assim ficou cunhado o maior sucesso comercial da sua vida.

Desde esse dia, o sr. Raul viveu embriagado pelo cinema. Não descurava os outros negócios, mas era na nova arte que depositava as suas ambições. Começou a reunir fundos, convencendo os capitalistas da cidade a fazerem-se sócios de um magnífico empreendimento. E depois partiu para Milão e para Turim, visitou as instalações onde se rodavam os clássicos do mudo italiano. De Paris trouxe um projecto para um estúdio moderníssimo que ele pretendia levantar na capital. Os sócios aplaudiram os seus esforços e ele meteu mãos à obra. Mas ainda nem as fundações estavam concluídas e já faltavam os recursos. E os sócios não aplaudiram quando ele lhes pediu um aumento da verba. O edifício estancou com os alicerces por completar.

O sr. Raul não desistiu. Uma larga abegoaria existia naquele terreno que antes fora um campo agrícola dos arrabaldes. Ali começou a rodar os interiores do seu primeiro filme, num plano gizado por um artista francês, o sr. Mariaud, talvez um técnico entre tantos que se ocupavam nas casas de Paris, e que viu neste país de amadores bem-intencionados a oportunidade de dar novo fôlego à sua carreira. Como todos se desorientavam em ideias inflamadas (adaptar os românticos, mostrar as riquezas da terra, o nosso povo tão pitoresco), decidiu tomar ele as rédeas: escreveu a história, encarnou o protagonista, rodou o filme.

Quando deu início ao projecto seguinte, os sócios examinaram os livros de contas e, perante a saliente evidência do buraco, o sr. Raul foi afastado da secção de cinema. Substitui-o o filho do sócio mais abastado, um rapaz que nada percebia de arte e da técnica, e que passou a acompanhar as filmagens na qualidade de capataz de seu pai. Como adolescente malcriado que era, sentiu a necessidade de interferir em todos os processos. Os trabalhos corriam de revés em revés e já todos davam como certo o fecho da produção. Mas a rodagem do segundo filme ia a meio e foi permitido ao sr. Mariaud que o terminasse. Logo que o fez, os alicerces do estúdio, os equipamentos e o terreno com a abegoaria foram vendidos apressadamente para suprir as faltas de capital. Destituído de tutela, o rapaz lança-se a usurpar as outras competências do sr. Raul, destrata-o à frente dos funcionários, insulta o seu espírito empreendedor. Absolutamente vexado, ele decide pôr fim ao seu sonho cinematográfico e deixa a empresa. Tinha durado apenas um par de anos. Dessa aventura restava-nos o segundo filme, que raramente foi visto, e, claro está, “Os Faroleiros”, dado como perdido durante anos, até que, no final do século passado, uma cópia foi encontrada no antigo escritório do sr. Raul.

Neste filme, o sr. Mariaud interpreta um homem honesto e dedicado ao trabalho que num sobressalto se vê obrigado a amparar uma prima jovem a quem o mar deixou órfã. A rapariga é bonita e gosta dele. E o homem, sem o confessar, deseja casar com ela. Mas o rapaz que com ele vigia o farol já antes cobiçava aquela prima. A rapariga, porém, preferia o velho e isso deixa-o louco de ciúmes. E o caldo da tragédia começa a borbulhar, o rapaz persegue-a para as falésias onde ela pastoreia as cabras, confronta-a com o seu peito magoado, acossa-a despeitado, empurra-a, e ela despenha-se no mar.
O homem passa a viver com o desgosto de um amor que lhe ficou em promessa. O rapaz com a culpa excruciante que, claro, se manifesta a todo o instante, sobretudo quando está fechado com o velho no farol, só eles e o mar, e a memória espectral da rapariga que atormenta a ambos. A rapariga e o mar, o cinema e os capitais; o velho e o rapaz, o sr. Raul e o jovem mimado. A metáfora é forçada, mas no momento em que escrevo este texto estou demasiado submerso nas duas narrativas para declarar uma trégua de fronteiras — para mais, alguém faz prova que as desavenças levadas para o set não ficam gravadas no celuloide? Seja como for, elas têm o mesmo desenlace. O velho sucumbe a defender os despojos do amor pela rapariga, o rapaz a vingar-se por esta nunca lhe ter pertencido. O rugir do mar abafa a altercação e, quando a maré vaza, não sobra nada. Minto: sobram dois nomes numa folha de papel que se fecha num arquivo. 

Pedro Leitão