The Misfits

John Huston / 1961



I never saw a wild thing
sorry for itself.
D. H. Lawrence

Within all great art there is a WILD animal: tamed.
Wittgenstein

Reno, Nevada. A localização do filme invoca na imaginação moderna a emoção e o risco do jogo e das actividades a ele associadas, o desregramento social e moral num dos entrepostos famosos na planície árida do oeste americano: lugar de casinos e bailarinas, deboche e perversão, de abismos fatais e glórias funestas.

Mas estamos em 1960 e os derradeiros elementos da mais temível criatura da fauna da região ainda se encontram vivos: os últimos cowboys deambulam livremente por ali. Vagabundos do deserto – a única casa que conhecem – decadentes mas orgulhosos, calejados em zaragatas de bar, danças no rodeo e maratonas de uísque, garanhões batidos, ultrapassados pela modernidade, na sua pele reluz a nobreza concedida pelas vergastadas do tempo.

À sua implacável arena, com o nobre objectivo de obter um divórcio amigável à luz das leis liberais da cidade, chega Roslyn (Marilyn Monroe), menina de Chicago, estranha aos costumes e perigos locais, que nunca tinha visto uma horta, nem empunhado uma arma. Desgostosa, inocente, entediada e bem-intencionada, seria a presa ideal dos autóctones, não fosse a sua senhoria, Isabelle – matreira e voluntariosa velhota, que se gaba de ter sido testemunha de mais de sete dezenas de divórcios e de cheirar cowboys à distância – lhe servir de tutora e guia.

Precavida e astuciosa, a senhoria tenta ensinar à sua inquilina as virtudes da mentira, para que esta obtenha um resultado favorável no acordo de divórcio. Porém, Roslyn mostra-se incapaz de repetir a prelecção: gagueja, hesita, tartamudeia incoerentemente. Este é o primeiro sinal da sua força moral – elemento decisivo do filme, pois é pela rectidão da sua ética e pela obstinação com que a afirma – e não recorrendo aos seus famosos atributos físicos, em si mesmo admiráveis – que Roslyn vergará o ethos dos animais selvagens que a assediam e a procuram impressionar pela cidade.

Todavia, num primeiro momento, ao charme dos cowboys ela não fica indiferente. O sentido de aventura, a genuína ousadia com que enfrentam a vida, o desprezo pelo tédio do dia-a-dia burguês – converterem-se em assalariados é para eles uma insustentável humilhação – o gosto pelo risco, o respeito por ideais que parecem situar-se para lá e acima do mero sucesso material, despertam-lhe uma curiosidade que ultrapassa o machismo gabarola e o paternalismo grosseiro com que é abordada. E a sua curiosidade levá-la-á às aventuras prometidas – mas nessa impetuosa viagem irá descobrir que o corpo do Oeste é afinal uma carcaça ofegante e roída; que a sua alma uiva de autocomiseração e ressentimento; e que os elevados ideais do mito americano são na prática uma infame selvajaria.

Três cowboys feridos revelar-lhe-ão os segredos por detrás da virilidade fanfarrona com que se apresentam: Gay Langland, última interpretação de Clark Gable, com o seu bigodinho de lápis, fadiga empoeirada e olhar combalido, é a encarnação da imagem romântica do Oeste, outrora puro e vital, hoje quebrado e encanecido; Monty Clift enquanto Perce Howland é já o Oeste doente, assolado pela loucura, raivoso porque encurralado nos encolhidos e hostis limites de um mundo prestes a desaparecer; Guido é o Oeste corrupto e chico-esperto dos biscastes e contrabando, que tenta sobreviver com um pé em cada mundo. Natural-born fools, assombrados por fantasmas vivos do seu passado, em todos eles se vê inscrita a sentença de Faulkner: The past is never dead. It's not even past.

A Roslyn confessam os seus pecados e dores e esta tudo lhes perdoa, até ao momento em que eles lhe mostram que na base do mito que lhes forja a identidade está um macabro crime: os homens que se orgulham da sua nobreza e liberdade, sobrevivem perseguindo e aniquilando os últimos mustangs, os cavalos selvagens do deserto americano. Os cowboys e os seus valores são os grandes responsáveis pela extinção de animais que representam na natureza o que aqueles representam na sociedade. Contra o horizonte pálido do deserto, animada pela paixão inabalável da sua força moral, Roslyn acusa-os de serem carniceiros, assassinos cruéis e mentirosos, dá-lhes a ver que as suas queixas são um paradoxo hipócrita:

You’re liars! All of you! You’re only happy when you can see something die! Why don’t you kill yourselves and be happy? You and Your God’s Country! Freedom! I pity you! You’re three dear, sweet, death men!

Arrebatadora, sonâmbula, carregada de pathos e desolação, é a denúncia suprema – e logo pela câmara clássica de John Huston, um dos seus orgulhosos mavericks – do Oeste americano e dos seus sonhos e mitos, a censura final dos seus ideais sangrentos, o reconhecimento doloroso da justiça das leis que o condenaram à extinção.

Gay necessita de uma luta derradeira com um mustang para aceitar o julgamento de Roslyn. A catarse tem de ser feita nos seus termos: um cowboy pode aprender, mas não aceita que ninguém lhe ensine. Renunciar a valores que lhe eram queridos é um acto que exige verdadeira coragem. Roslyn, impressionada, pergunta-lhe: How do you find your way back in the dark? Gay aponta uma grande estrela no céu e responde: The Highway is under it. Não temos dúvidas: é o caminho mais belo do cinema; é a Sta(i)rway to Heaven.

Pedro Ramires