Nuvens Passageiras  

Aki Kaurismäki / 1996



Lembrando os cerca de 2500 cemitérios de guerra britânicos espalhados por França e pela Bélgica, Paul Fussell conta-nos, em “The Great War and Modern Memory”, que, depois das batalhas mais sangrentas, era habitual enterrarem-se os corpos em valas comuns, com os soldados abatidos amontoando-se debaixo da terra. À superfície, no entanto, as lápides apareciam dispostas em filas, dando aos familiares e amigos a ilusão de um espaço individual, íntimo, reservado aos restos mortais daqueles que haviam conhecido e amado. Os princípios que sustentaram essa arquitectura de urgência, em tempos de guerra, podem ser encontrados noutras épocas, noutros territórios e, num certo sentido - é o que aqui nos interessa -, no cinema de Aki Kaurismäki. Olhando para o conjunto dos seus filmes, percebemos essa mesma tentativa de trazer à tona e ordenar, em menos de duas horas, um intrincado mundo subterrâneo que raramente visitamos. No caso, um mundo onde se fortalecem as angústias mais fundas e a confusão escondida dos homens e das mulheres para quem a vida é uma conquista diária, pois nada está assegurado, nem sequer o dia seguinte de labuta. E, nesse processo, tratando os males de uma classe através de histórias singulares, Kaurismäki confere nobreza a essas pessoas, atribuindo, a cada uma, um lugar com luz própria. Em vez de épicos sobre a luta do proletariado, ficamos assim mais bem servidos com pequenos contos da desgraça. Comédias duras como diamantes, sem punch-lines nem piruetas.

Não faltam cuidados, nos filmes de Kaurismäki. Da escolha dos objectos às luzes e sombras de cada plano, muito pouco surge ao acaso. Quase todos esses elementos obedecem a uma rigorosa oficina, engendrada por um finlandês talentoso que sabe bem o que quer e o que pode fazer. Mas, apesar da beleza procurada e da beleza encontrada, Kaurismäki está longe de ser um esteta. A Kaurismäki fica-lhe curto, nas mangas, o fato de Wes Anderson, por exemplo. E não só devido ao seu empenhamento político e à indisfarçável vizinhança com uma espécie de poesia suja e desencantada. O que verdadeiramente o separa do grupo dos estetas é o tratamento das personagens. Afastadas de qualquer género de naturalismo, as personagens dos seus filmes nunca se convertem em bonecos, nem se apequenam em favor da composição. Pelo contrário, engrandecem-se em cada quadro silencioso, em cada contemplação solitária à janela ou no sofá puído da sala. Mesmo quando as cores e a posição da câmara parecem perfeitas, elas resistem ao equilíbrio das formas e mostram-se desadequadas e tragicamente humanas.

No centro de Nuvens Passageiras está um casal. E um casal, no centro de um filme de Kaurismäki, nunca perde muito tempo com palavras ou doçuras. Prefere fumar cigarros e fazer pela vida. O amor que se aguente das canetas. Marido e mulher (interpretada pela extraordinária Kati Outinen) saem juntos apenas uma vez, para esquecer, primeiro no cinema e depois nos copos, o despedimento do azarado Lauri, dispensado do trabalho após um cruel jogo de cartas. Não se trata de uma saída divertida ou de uma festa para celebrar um sucesso inesperado, mas de uma noitada em que se partilham infortúnios. Como não há mal que sempre dure, convém aproveitar o momento.

Por causa da bravura e das conquistas, ou até, por vezes, por causa de uma fascinante derrota, ambicionamos, nos filmes, o lugar do protagonista. Esta é a regra e talvez uma medida da nossa vaidade. Nos de Kaurismäki, porém, eu quero sempre ser o tipo que aparece para dois minutos de tango ou rock finlandês, e depois se afasta, ajeitando o laço ou levantando a gola do casaco, já fora do enquadramento.

Daniel Marques Pinto