Mean Streets   

Martin Scorsese / 1973



In everything that can be called art there is a quality of redemption. It may be pure tragedy, if it is high tragedy, and it may be pity and irony, and it may be the raucous laughter of the strong man. But down these mean streets a man must go who is not himself mean, who is neither tarnished nor afraid.
The Simple Art of Murder - Raymond Chandler

Ninguém tem exactamente um trabalho. Quando muito, há quem comande um negócio de fachada ou se dedique a um contrabando qualquer, nem sempre com engenho. Alguns fisgam-se em promessas atrás de promessas, e quase todos vivem de esquemas. Não há uma alma que não tenha dívidas, de sangue ou de dólares. E nada se pode resolver logo, só mais tarde. De preferência, muito mais tarde, pois em cada momento surgem urgências, engodos, outros assuntos absolutamente prioritários, umas miúdas à espera de bebida. Para cada pequeno sarilho, uma demora das grandes. E não é que o presente não seja animado, mas o futuro, o futuro é que vai ser bom e bonito. Pago-te para a semana, vais ver. Take it easy.

Em 1973, Robert de Niro anda pelos trinta anos, Harvey Keitel tem trinta e quatro, e Scorsese não pode incluir, no seu currículo, mais do que uns documentários avulsos, umas curtas de baixo alcance e duas longas ainda sem uma assinatura firme. Mas, com pouco dinheiro, e algumas histórias e personagens resgatadas aos seus tempos em Little Italy, talvez se engendre um belo filme, suficientemente pessoal para não se tornar falso, e com os ziguezagues e a distorção imprescindíveis para não passar por verdadeiro. Afinal, Hollywood é a escola do artifício, da descarada fantasia. E apesar da admiração pelo cinema experimental e pela nouvelle vague, Scorsese não quer ser, ou não pode ser, Cassavetes ou Godard. É por dentro da estrutura sólida e ordenada do cinema clássico americano que Scorsese pretende infiltrar o seu bando de irresponsáveis. Para um plano desses, ser um jovem realizador é uma vantagem. E ser Scorsese também.

O gangue fortalece-se na rua, no bar do bairro. Não faltam atrevimentos e problemas. Alguns resolvem-se com uns socos no sobrolho, com umas ameaças; outros entrando em carros e carregando a fundo no acelerador. Se tens vinte dólares frescos no bolso, vais ao cinema com os amigos, ficas com uns copos por tua conta. Os teus comparsas são todos homens e há um deles que não pára quieto. Johnny Boy faz explodir marcos do correio, dispara contra o Empire State Building, sobe aos telhados, dá cabo de portas e janelas, da paciência da malta. Não cumpre prazos, nem horários. Inventa palhaçadas para fazer rir as mulheres e amaciar o coração dos machos. Johnny Boy tem a proteção de Charlie, que mal se consegue proteger a ele próprio. Se a energia e a vibração do filme vêm principalmente de Johnny (um Robert de Niro indomável, mas sem gravidade), é com Charlie que Mean Streets ganha músculo e substância, muito pela arte de Harvey Keitel, um mestre do desfasamento que, nos trintas, aparentava ser um actor mais experiente, e que agora, aos 80, tem a suprema lata de parecer muito mais novo.

Como em tantos filmes de durões, a masculinidade é exibida entre pares e o papel das mulheres resume-se a desencadear ou mediar conflitos. Em Mean Streets, só duas delas adquirem relevância, e para sublinhar a tibieza moral de Charlie, as suas contradições. O mais provável é que Charlie esteja caído de amores por Teresa, a vizinha esguia e acometida aqui e ali por crises epilécticas, mas trata-a com desdém porque teme a chacota dos amigos e dos familiares (em especial do tio, dono do restaurante que ele ambiciona chefiar e para quem a rapariga não é boa da cabeça). E nem o desejo mais selvagem evita que Charlie deixe pendurada uma bailarina do clube, que ele convidara para jantar, tal o medo de ser visto, na Village, na companhia de uma negra. Na sua intimidade, perante deus ou perante os homens, Charlie vive num permanente e auto-imposto julgamento. Sabemos mais do que deveríamos sobre o que lhe agita as entranhas porque a voz off do filme é uma voz interior, sem ambições narrativas, e acaba por soprar-nos duas ou três fragilidades ao ouvido.

Diz-se que Scorsese, por recomendação de um amigo, encontrou o título do filme num ensaio de Raymond Chandler. Pouco espanta a afinidade. Os dois partem de géneros formatados, no cinema e na literatura, e em vez de apostarem na subversão das regras do jogo, aproveitam cada constrangimento para reforçar a sua liberdade. Por razões orçamentais de produção, Scorsese filmou grande parte da Nova Iorque de Mean Streets em Los Angeles, no mapa ficcional de Chandler. Como homenagem, teria sido ridículo fazê-lo. Tendo sido fruto das circunstâncias, talvez não fique mal abençoarmos aqui essa pequena curiosidade, esse cruzamento subtil de ruas distantes e vizinhas, onde o Charlie do filme e o Marlowe dos livros poderiam ter parado para um uísque e dois dedos mal medidos de conversa.

Daniel Marques Pinto