License to Kill 

John Glen / 1989



Ele não possui o lustre glorioso, a robustez elegante e a sugestão de violência dos traços crispados do rosto de Sean Connery; nem tem o semblante fino e as maneiras galantes à grand seigneur de Roger Moore, a quem sucedeu, ou a confiança viril e postura à superstar de Pierce Brosnan, a quem passou a tocha; Timothy Dalton representa um James Bond que parece aquilo que é: um funcionário competente e de elite do MI6. (Deixemos Daniel Craig para depois e coloquemos de lado George Lazenby, com o seu aspecto de filho de magnata industrial ou lamentável herdeiro de um título nobiliárquico que sacou o papel com uma cunha: o filme é mau, o protagonista é pior, e ter sido, em parte, filmado em Portugal, um facto a esquecer.)

A sobriedade dos alfaiates de Savile Row, as camisas de seda e os sapatos de couro de Jermyn Street, os botões de madrepérola, o Rolex e o tuxedo de alpaca, os clubes exclusivos de Mayfair, Soho e Covent Garden, onde se bebe Mumm e claret por entre partidas de chemin de fer, a concretização da aspiração de classe do middle man, hoje uma espécie de kitsch a very curious thing, snobbery»), tudo isto se insinua na aliança exemplar de postura clássica e abordagem serena e descontraída, no à vontade na personificação dos códigos e padrões estéticos de uma classe, e até no nariz afilado e nos penetrantes olhos azuis com que Dalton nos olha. É por isso estranho vê-lo como protagonista do primeiro 007 quase totalmente filmado longe do Reino Unido (há apenas um curto plano de Miss Moneypenny suspirando por James em White Hall).

License to Kill começa num famoso retiro aristocrático na baía de Biscaia… em Key West, digo, estamos em Key West, na Florida. Paradoxalmente, em Licence to Kill o nosso agente secreto preferido não tem licença para matar, e, por uma vez, não quer salvar o mundo, apenas vingar a morte de um amigo. Para isso desobedecerá à agência, colocando o seu savoir faire ao serviço da perseguição endiabrada de um barão da droga (a epiderme fulminada de crateras de Robert Davi) que domina uma república das bananas no Caribe e inunda os Estados Unidos de cocaína barata. A DEA e demais obstáculos vendem-se por uns patacos. Quem não cede é assassinado. Como é suposto, vingando o amigo, Bond destruirá a lucrativa operação.

O filme segue as convenções habituais – entremeando o savoir faire temos direito à usual demonstração de savoir vivre: o álcool, o jogo, as miúdas, os desportivos (e os clássicos) topo de gama – mas contém algumas surpresas. Para quem o vê hoje, um espantosamente jovem Benecio Del Toro, exibindo um olhar felino e um bronzeado de colocar señoras em transe e caballeros na defensiva, não será a menor delas. Talisa Soto, uma inocente (e insossa) puertorriqueña que Bond resgatará ao chefão, e a camaleónica Carey Lowell – o cabelo curto dá-lhe um ar sexy e jovem: uma boa ideia – fazem de Bond girls. Com esta última, o flirt e a tradicional repartee nada fica a dever aos melhores.

Avalia-se um 007, filme, menos pela imaginação com que é realizado do que pela eficiência com que os emblemas narrativos da saga são executados; e um 007, actor, pela capacidade de encarnar um estereótipo no tom certo, retirando-lhe afectação e devolvendo-lhe vida e emoção. Protagonizado por um actor imbuído de um charme com certeza estranho ao popular Daniel Craig – sempre mais próximo do metrossexual bimbo do que do cavalheiro viril, Daniel Craig está para Timothy Dalton como Robbie Williams está para Lloyd Cole – nem License to Kill nem Timothy Dalton costumam marcar presença nos lugares cimeiros da lista dos melhores 007. Que isso não vos impeça de os rever. À confiança.

Pedro Ramires