Les Amants Réguliers 

Philippe Garrel / 2005



Perché sur une barricade
L’oiseau sous les grenades
Son chant de folie était beau

[Jean Michel Caradec]

Eu e a minha melhor amiga. Daquelas com quem se partilham flirts, livros, chás gelados num pátio de Verão. Filmes, muitos filmes. E talvez essa grande ilusão: o amor. Eu e a minha melhor amiga, sozinhas, vendo um filme de Garrel. Transportadas para a Rue Gay-Lussac, para Nanterre, para o abismo das barricadas, para um Boulevard Saint Michel transbordante de desobediências civis. Sonhando, ambas, com as jovens que podíamos ter sido, ali, naquele limbo de apoteose e anti-clímax. Recuperando afinidades electivas, como a admiração por Daniel Cohn-Bendit (ela) e a paixoneta por Jacques Sauvageot (eu). Ali, inteiras e limpas, do alto dos nossos vinte anos, entre grands soirs et petits matins.

Depois dessa primeira vez, revi Les Amants Réguliers sempre com outros olhos. Olhos de quem já talvez não sonhe. E aqui chegamos ao ponto. Não são os meus olhos que se negam a mostrar-me que algo terá ficado de tudo aquilo; é Garrel a dizer-nos que muito pouco há a salvar. Apesar das longas e lentas sequências eivadas de memória cultural, a sua é uma visão intimista que a espaços pontua a incandescência do tumulto e ao mesmo tempo o elide. Um filme romântico, portanto, no seu árido sentido de condenação. Uma espécie de morte em movimento a que nem a visão anárquica da sociedade nem a utopia do espírito livre escapam. Ao modo melancólico junta-se um deslumbramento – paisagístico também – pela finitude. E pela impossibilidade, pela falência de um destino. De uma atmosfera de grève génerale passa-se a uma de rêve general, quando o idealista Jean-Christophe chega a casa às primeiras horas da manhã, exausto de fugas várias, e deixa no ar (embora a sua mãe ali esteja) a pergunta: é possível fazer uma revolução pelo proletariado apesar do proletariado? Adormecendo logo de seguida, a personagem confronta-nos com a evidência de que qualquer revolução logra ser mais real em estado onírico do que fora dele. Em detrimento da bigger picture, Garrel dá-nos um seu reverso: um retrato íntimo de um grupo de burgueses hedonistas cujas incertezas existenciais se (des)medem em doses de droga, de sexo, de ideais sem corpo. Até que o vazio, o vazio que conta, se instala. Onde estarão todos eles, this time tomorrow? Em casa de Antoine, microcosmos de desencanto e de aporia, a intimidade desfaz-se em equívocos, em males de amor e em excesso de ópio. A vida lá fora, para gente assim, não será diferente. E nem mesmo o amor perdura.

Os amantes não são, de todo, regulares. Vemo-la plasmada, essa verdade, no semblante de Luc, o pintor. Ou antes, vislumbramos-lhe a sombra. Mas apenas lhe sentimos o peso com François, o poeta. Ele que sabe Musset de cor, projecta Keats também, “half in love with easeful death” (Ode to a Nightingale). Rejeitando a violência como arma contra a autoridade, assim como a ideia de publicar os seus escritos, François funde-se com a figura anacrónica do artiste maudit, ou do dandy suicida, para ser, ele próprio, uma obra de arte. Lilie, a jovem por quem troca as pedras arrancadas à calçada pelos sobressaltos do coração; Lilie, constructo mais do cérebro do que do mundo, traz-lhe uma batalha que ele não vence – ou não se esforça por vencer. Do gás pimenta usado pela polícia para dispersar quem se manifesta contra o status quo ao fumo dos opiáceos que paira em casa de Antoine, o filme dá conta de uma insubstancialidade perene, uma letargia absoluta. Já ali não moram demandas de grupo e causas para rebeldes (nem sequer rebeldes de trazer por casa), mas apenas angústias individuais, irmãs do tédio. Cada personagem, a seu modo, perdida que está na estilização que Garrel lhes confere, suspende a sua materialidade, colapsando. “On éclate!”. São fantasmas, estes que nos guiam, vagamente conscientes das suas esperanças espezinhadas, fruindo da banalidade de um qualquer conforto sem confronto, seja ele uma dança ao som dos The Kinks ou o olhar de uma jovem mulher, do outro lado da sala, todo ele essência de solidão: a dela e a de quem a olha. Como podem os estudantes ousar salvar o proletariado se se condenam, se falham enquanto grupo, se definham numa bolha autofágica? Estarei eu a pedir demasiado aos pais do maio de 68, essa “ilusão lírica” proclamada por Raymond Aron? Ou a Garrel? Certo é que o que começa como uma aurora italiana (Lilie evoca o filme Prima della Revoluzione de Bertolucci) se metamorfoseia em crepúsculo alemão, tempestuoso e sem saída, cobrindo de penumbra a sala de cinema. Eu e a minha melhor amiga, cientes como Camus de que a existência pede revolta, talvez não fôssemos capazes de mais ou de melhor. E por isso, malgré tout, daquela sala saímos sem termos partido verdadeiramente. O Quartier Latin, as exigências da UNEF, os coup de foudre, os cigarros que, lentos, se extinguem com o mesmo vagar fúnebre com que se apagam as chamas da contestação – a tudo isso pertencemos de alguma forma ainda, enquanto de Gaulle anuncia, solene, na televisão: “La récréation est finie.”

Cláudia Coimbra