Italianamerican 

Martin Scorsese / 1974



O combate entre a influência das nossas predisposições genéticas e a preponderância da aprendizagem e do ambiente nas características que nos definem, aquilo a que os anglo-saxónicos, num baptismo feliz, chamaram nature vs nurture, é um combate histórico, longo, e que vai ainda entreter umas quantas gerações. Nos anos de ouro da decifragem do genoma, a natureza parecia ter-se transformado no implacável comandante de grande parte da nossa vida, mas os recentes avanços da epigenética (uma área científica que se ocupa da forma como os factores ambientais e as experiências podem condicionar a expressão dos nossos genes e talvez dos genes dos nossos descendentes) vieram temperar um pouco a euforia de vitória de Rocky Nature e deram alento a Nurture Creed para se levantar do tapete e ter forças para um novo round. Independentemente daquele que vier a ser o resultado final do combate (tanto quanto for possível fechar este assunto), uma coisa é certa: será difícil que, neste ringue, alguém se venha a tornar o rei absoluto. E pelo menos com uns bons socos da natureza, da nossa natureza, teremos sempre que contar. Bastaria escutar o timbre de voz e os trejeitos do pai de Martin Scorsese, em Italianamerican, para perceber que alguma tralha bem concreta passa de pais para filhos, à revelia da vontade destes em acolher ou desprezar essa herança. Ali estão os mesmos agudos, a mesma forma de inclinar a cabeça, de mover as sobrancelhas e de hesitar. Já o prazer da conversa e a velocidade do discurso aparentam ser legados do lado materno. Termos conhecido primeiro o filho Martin, numa cronologia contrária ao trabalho silencioso da biologia, só amplifica o nosso sentimento de espanto perante a força dos laços de sangue. Quando o realizador pede à mãe, logo no arranque do documentário, que nos explique como aprendeu a receita do molho de carne, ele está a convidar-nos, não para o cinema, mas para a mesa, o lugar onde as suas origens se tornam mais vivas.

Martin Scorsese filmou Italianamerican em 1974, na casa dos seus pais, no bairro de Little Italy, em Manhattan, revisitando a sua infância e a história familiar, recuando até aos anos em que os seus avós sicilianos decidiram emigrar para os Estados Unidos, à procura de emprego e de aventura, no início do séc. XX. Ao longo do documentário, o pai Charles e a mãe Catherine vão contando, com intervalos para alguns arrufos bem patuscos, os episódios mais marcantes desses tempos em que não havia televisão, nem dinheiro no bolso. Uma época em que famílias numerosas ocupavam casas modestas, quase sem mobília, e em que os homens e as mulheres trabalhavam de sol a sol para poder sustentar a prole e saborear um ou outro pecado ocasional, mas nunca a preguiça (“there was no such thing as being tired”).

A meio do relato, Charles e Catherine saem, por instantes, embora com cautela, do ambiente doméstico e falam um pouco das tensões entre irlandeses (os primeiros a chegar àquela zona de Nova Iorque) e italianos, lembrando que também entre comunidades de emigrantes podem crescer conflitos, lutas de território, mesmo que essas comunidades enfrentem aflições semelhantes e procurem a mesma luz (o sonho americano) ao fundo do mesmo túnel (a realidade americana).

Italianamerican é um filme amador concebido por um mestre, uma pequena história de família que Scorsese recebe sem estranheza e sem sair do seu lugar, como se fosse um cesto de pão que algum parente lhe estendesse num almoço de Domingo. Marty, aos trinta e um anos, barbudo e sentado no apartamento da sua primeira juventude, já suspeita que ninguém consegue entender o mundo dando atenção apenas aos grandes gestos. No final, uma parte significativa da coluna dos créditos ficou reservada à receita do molho de Catherine. Leva cebola, alho, tomate, um pedaço de vitela, outro de vaca, salsicha de porco, osso do pescoço de cordeiro. Uma folha de manjericão.

Daniel Marques Pinto