Dèmoni 

Lamberto Bava / 1985



Em qualquer espectador, a suspensão voluntária da descrença é por hábito um sinal de optimismo, pois significa que quem vai ao cinema não teme as consequências de acreditar em tudo o que um filme lhe oferece. Mesmo que seja um enredo improvável ou um diálogo sem pés nem cabeça. Nalguns casos raros, essa suspensão de julgamento pode surgir adulterada e revelar apenas um desespero perante a vida concreta e os seus reveses. Felizmente, na maioria das vezes, nada nos impede de escolher a primeira variante. Ao contrário das personagens de Dèmoni que, para nosso entretenimento, estão desde cedo condenadas à menos benigna. Na história delas, o diabo madruga e deita-se tarde.

Ainda que o mal possa surgir em toda a parte, em Dèmoni ele parece fermentar com especial intensidade num renovado cinema de Berlim para onde várias pessoas são atraídas através de enigmáticos convites, distribuídos nas bocas de metro da cidade por um homem com máscara (esse adereço extravagante em 1985, banal no outono de 2020). Ninguém resiste a uma borla, é a primeira lição a tirar. As outras serão bem mais inesperadas e violentas. E para toda a gente, embora nós tenhamos sempre disponível uma colecção de fugas simples, que passam, entre outras cobardias, por virar a cara ou fechar os olhos durante meio segundo, e, nos momentos de confronto com as imagens, à boleia do nosso medo - um medo desejado, verdadeiro e disparatado em simultâneo -, por libertar a imaginação para um divertimento algo bizarro, para aventuras e perigos que, sem uma tácita anuência aos exageros da trama, experimentaríamos com repulsa, tal a crueldade explícita das cenas. Nisto consiste o privilégio do espectador real. Ao invés, dentro da fantasia de terror trash de Dèmoni, os espectadores sofrem à brava. No coração que se pressente e na carne vulnerável que se vê.

Como qualquer bom realizador de thrillers, Lamberto Bava alterna quadros serenos com outros assustadores. O filme começa por ser tranquilo mas ligeiramente perturbador na carruagem de metro, torna-se tenso na estação que se esvazia, e de novo leve quando Cheryl encontra a amiga na rua e a convence a fazer gazeta às aulas de música e a ocupar o fim de tarde no cinema Metropol, um lugar que é central na história de Dèmoni mas também relevante na da cidade de Berlim. Inaugurado em 1904, com outro nome, o edifício começou por ser um teatro e uma sala de concertos, transformando-se em sala de cinema pouco tempo depois, em 1911. No final dos anos 70, o espaço acabaria por converter-se numa discoteca e night club de grande influência na vida nocturna de Berlim ocidental, onde bandas eternamente sombrias e desconhecidas se terão cruzado com David Bowie, Iggy Pop, Kraftwerk, Nina Hagen e Depeche Mode. Mas em Dèmoni, o Metropol é cinema do princípio ao fim, embora vá sofrendo consideráveis e espectaculares danos no seu recheio e na sua estrutura. A música (o magnífico rock progresivo de Claudio Simonetti e um heavy metal ocasional) aparece apenas para nos atemorizar, sem interferir directamente na história. Morre-se de muitas maneiras naquele inferno, mas nunca com uma corda de guitarra à volta do pescoço.

O filme dentro do filme seria, noutro tipo de cinema, uma forma de aludir a uma sofisticada metanarrativa, mas, num thriller italiano, esse mecanismo funciona sobretudo como rastilho, como preâmbulo ao festim de desastres que se seguirá. E o primeiro sobressalto acontece quando uma mulher, depois de fumar um cigarro como se estivesse na varanda (uma opção extravagante em 2020, quase banal em 1985), decide abandonar a plateia para tratar um pequeno corte na cara, resultado de uma brincadeira com uma máscara metálica, no foyer, e que entretanto se agravara. As semelhanças desse episódio com o que se passa na tela do Metropol são evidentes e a coincidência traz fumo e traz fogo. A mulher já não regressa ao seu lugar. Nada regressa ao seu lugar. O demónio inicia, com espalhafato, as suas conquistas. Entre os sobreviventes dos primeiros ataques, alguém sugere “parar o filme”. A proposta, apesar de frágil, não é disparatada de todo: se o que acontece na tela é replicado no Metropol, suspendendo-se a projecção, o sossego regressaria. Não resulta. Há demónios que só precisam da imaginação para germinar. Depois, tornam-se tão reais como o braço pesado de uma poltrona ou o veludo de uma cortina vermelha.

Daniel Marques Pinto