Cléo de 5 à 7 

Agnès Varda / 1962



Das cinco às sete, Cléo visita uma cartomante, bebe café para se acalmar, chora e desespera (talvez com razão, mas como se não a tivesse), ouve conversas íntimas à socapa, compra um chapéu de inverno no primeiro dia de verão, multiplica-se nos espelhos, frívola e intensa, faz meio minuto de exercícios musculares, em lingerie, e umas festas distraídas nos gatos, ajeita o cabelo, estende o corpo na cama de dossel, recebe burocraticamente o seu amante, fuma uma cigarrada num baloiço, ensaia músicas novas, encostada ao piano da casa, de robe de plumas, num cabaré doméstico e instável, gargalha, entedia-se, abandona a peruca, usa roupa nova desrespeitando a superstição da sua criada (estrear roupa a um terça-feira!), sai loiríssima para a rua, ocupa o passeio, vê um homem de gravata a engolir três rãs, escolhe a sua própria canção numa jukebox, vira um copo de conhaque num trago, serpenteia entre as mesas, procura a melhor amiga, encontra-a nua e solar num atelier de escultores, assiste, na cabine do projeccionista, aos minutos finais de uma comédia um pouco tonta, anda a pé, de descapotável, de táxi, de autocarro, sobe e desce escadas, atravessa jardins, conhece um soldado prestes a regressar à guerra na Algéria, chega de vestido preto ao hospital. São 120 minutos especiais porque Cléo, suspeitando que tem um cancro, espera, nesse intervalo de tempo, os resultados de umas análises decisivas para o diagnóstico.

Cléo de 5 à 7 não é um filme sobre duas horas de uma vida, mas sobre aquilo que seria a vida se tivéssemos dela apenas mais duas horas. E que vida seria essa? Quase banal, como se a beleza que importa estivesse toda à superfície e a busca por tesouros fundos não passasse de uma distração, de uma expedição inútil, destinada ao fracasso.

Reconhecer a força dos detalhes triviais do quotidiano é uma experiência que faz parte da nossa relação com o passado: uma frase simples num postal antigo ou um pequeno bilhete de comboio encontrado no bolso de um casaco fora de moda despertam, com frequência, sentimentos mais avassaladores do que uma carta arrebatadora ou do que um qualquer monumento privado a amores que partiram. A distância ajuda a afinar primazias. Outra história é fazer o mesmo no dia-a-dia, com as armadilhas do costume a funcionar, apetitosas, e com o tempo a correr sem pausas, a nosso favor e contra nós. Talvez só a notícia de uma doença terminal possa contribuir, com a sua violência, para libertar o olhar de velhos cansaços e despertar um encantamento pelos mais prosaicos pormenores da existência. Mas Agnés Varda, frame após frame, numa montagem que é um tratado de leveza, convence-nos que também o cinema permite uma vitória sobre o tempo. Confiemos então no vigor do filme, pois falecer não dá saúde nenhuma.

Duas cenas resumem a descoberta do novo prazer da lentidão na vida de Cléo, perante a proximidade, real ou imaginada, da morte: na primeira, sombria, vemos homens e mulheres através dos olhos da nossa querida protagonista, depois desta sair do bar, um tanto tocada, e esses homens e essas mulheres parecem pesados e mais concretos do que ela, que avança como um fantasma atormentado; na segunda, com uma reconquistada serenidade, Cléo pede ao motorista de táxi para arrancar sem pressa porque quer espreitar, através da janela, os movimentos graciosos da sua amiga Dorothée, antes desta desaparecer no cimo de uma escadaria de pedra. Cléo está atenta a tudo. E quando o soldado gentil a aborda mais tarde no jardim, ela dá-lhe troco. Por hábito, Cléo não responde a desconhecidos mas, naquela tarde, esquece-se. Cléo anda distraída. Talvez seja esta a receita nouvelle vague para a felicidade: atenção e esquecimento (e alguma pinta). Em todo o caso, perto das sete, com o tempo contra e a favor dela, Cléo já não tem medo. E, aparentemente, não ter medo é bem melhor do que ser feliz. Que alívio.

Daniel Marques Pinto