Toni Erdmann

Maren Ade / 2016



Os papéis reservados a pais e filhas nas relações familiares estão mais ou menos estabelecidos: num arco temporal que varia entre os primeiros 17 a 20 anos na Europa protestante e os primeiros 25 a 35 na Europa católica, é suposto os pais educarem e sustentarem as filhas; e a partir do momento em que o declínio físico dos pais o exigir espera-se que as filhas estejam lá para os apoiar.

Há no entanto uma zona cinzenta em que ninguém sabe muito bem qual o seu papel; e o súbito afrouxar da ligação familiar não raras vezes induz uma crise de personalidade nos seus elementos: nas filhas porque numa sucessão de tentativas-erro procuram afirmar a sua, frequentemente tendo a dos pais como referência: contrariar, replicar ou superar; e nos pais porque a relação próxima com as filhas estruturou de tal forma a sua vida que o indivíduo se confunde com o seu papel. Enquanto esta indefinição não é resolvida, a relação entre pais e filhas torna-se um baile de máscaras, uma peça onde actores confusos trocam os papéis, uma conversa entre pares em que ninguém quer reconhecer que, para estranheza de todos, a conversa se dá agora entre iguais.

Toni Erdmann filma as perplexidades e desventuras de um pai e de uma filha à procura de um novo equilíbrio na ligação que os une.

Winfried, um senhor alemão bem patusco, homem de sensibilidade, humanista, professor de música solitário, numa crise existencial agudizada pela morte do seu único companheiro (o cão), é um pai desconcertado perante um facto que lhe parece absurdo: a sua filha é hoje adulta e independente. Como se isso não bastasse, é uma mulher que se esquece de ligar à avó nos anos desta; que apresenta uma figura tensa e esquálida (a cor, o peso); uma vida profissional guiada por um código que ele não subscreve (o mundo corporate); e uma vida emocional da qual ele desconfia (onde está o namorado? e filhos?).

Depois de um encontro fugaz e frio durante uma reunião de família, Winfried decide, num extravagante acto de amor paternal, apanhar um avião, cruzar a Europa, e ir salvar a filha a Bucareste, onde ela trabalha. E é assim que Ines Conradi, uma mulher ambiciosa, no epicentro de um enorme desafio profissional, habituada a cumprir objectivos e metas de forma eficiente, focada em progredir na competitiva carreira que escolheu, se vê confrontada com a inoportuna, embaraçosa e por vezes ultrajante presença do pai no seu local de trabalho – e na sua sala de estar, e no estabelecimento onde sai à noite com as amigas, e um pouco por todo o lado.

Na saga burlesca de episódios ridículos e peripécias absurdas que se seguem – durante a grande farsa que cria para manter o anonimato no contacto público com a filha, Winfried adopta todo o repertório do tarado masculino: o stalker, o voyeur, o intruso (chega a esconder-se no guarda-fatos da filha) e o absoluto chanfrando (fantasia de carnaval) – o espectador, atónito, não sabe se se há-de deixar comover pela obstinada e irresponsável ousadia com que um pai desesperado procura resgatar a filha de si mesma, ou admirar o auto-controlo desta, que, atrapalhada e confusa perante macacadas que fariam quase toda a gente perder a cabeça, hesita em aplicar ao pai a lógica implacável com que enfrenta os desafios profissionais colocados pela empresa de consultadoria em que trabalha – a sua presente missão consiste em produzir conteúdos que transformem numa decisão racional o cruel despedimento de centenas de trabalhadores, informação veiculada no eufemístico e cobarde jargão da seita, o qual ela demonstra dominar na perfeição, impressionando, com a sua aparente indiferença à sorte dos outros, chefes e colegas.

A relação entre os dois vai ser definida nos momentos altos do filme.

O primeiro momento é de confrontação, um tête-à-tête entre pai e filha, um diálogo em que a acusação do pai – Ainda és humana? – tem sido muito citada, mas a resposta da filha, olhos nos olhos, é a afirmação definitiva de uma relação entre iguais: Por que actuas como um falhado? Conheço pessoas da tua idade que ainda são ambiciosas e têm projectos. Ela mostra que não vai admitir a condescendência do pai. Acusada de seguir princípios que ele condena, aponta-lhe onde o levaram os extraordinários princípios que ele seguiu. É uma cena em que, na intimidade, a verdade se confunde com a crueldade. É uma cena difícil de ver.

O segundo é um momento de comunhão e o derradeiro marcar de posições entre pai e filha, cena onde ela reconhece o poder do amor filial – acedendo a participar, com o pai ao piano, numa performance tão surpreendente como extraordinária de The Greast Love of All –

        And if, by chance, that special place
        That you've been dreaming of
        Leads you to a lonely place
        Find your strength in love

enquanto ao mesmo tempo demarca os seus limites: afinal, é difícil não ouvir

        I decided long ago
        Never to walk in anyone's shadows
        If I fail, if I succeed
        At least I'll live as I believe

como um grito de independência que o pai deve acatar.

O grande mérito do filme, e portanto da realizadora, Maren Ade, foi conseguir, enquanto apresenta ao espectador cenas rocambolescas e personagens de uma índole especial, ater-se a um minucioso realismo, formal e narrativo. É um testemunho da sua seriedade a obra não ter degenerado num infantil filme de género – uma comédia ou drama familiar, mais ou menos light –, ter afirmado uma moral sem cair no sermão moralista, ter filmado caracteres em vez de caricaturas. Maren Ade mostrou como é possível usar uma imaginação selvagem sem abastardar os elementos sobre os quais a aplicámos. O filme é um triunfo absoluto.

No final, pai e filha parecem aceitar-se mutuamente; mas o filme termina com ela informando o pai que o seu próximo trabalho é em Singapura (distância, distância) e nós não garantimos que Toni Erdmann não apareça por lá. Sem avisar.

Pedro Ramires