The Big Red One 

Samuel Fuller / 1980



O escritor russo Vladimir Nabokov tinha como critério definidor de grande literatura a capacidade do texto em provocar um arrepio de espinha no leitor. O ponto nevrálgico do critério de Samuel Fuller situava-se num local ligeiramente diferente: «If a story doesn’t give you a hard-on in the first couple of scenes, throw it in the goddamned garbage.» Assim, quando, como soldado da 1ª Divisão de Infantaria Americana, conhecida como The Big Red One, foi fotografado por Robert Capa a bordo do USS Henrico, poucas horas antes do desembarque em Omaha Beach, no Dia D, Samuel Fuller tinha passado os últimos dois anos, e passaria o seguinte, aterrorizado com a possibilidade de perder o elemento essencial da sua teoria estética: «There was only one thing I was afraid of: stepping on a mine and losing my cock in an explosion.»

Aos 31 anos, sem qualquer filme realizado mas já com quatro livros publicados e uma boa reputação como argumentista em Hollywood, Fuller tinha-se encontrado uns dias antes com Alfred Hitchcock em Londres para lhe impingir um argumento – «He said he’d meet me in the bar. I sat down in one of those Queen Anne chairs and waited. Queen Anne must have had a very small ass, because when Hitchcock arrived, he could hardly squeeze into the damn thing.» – e esbarrar-se-ia uns meses depois com Marlene Dietrich na Alemanha, ela como protagonista de um daqueles tours realizados por darlings para animar o princípio estético dos soldados, ele como soldado que não resistiu a apresentar-se e encomendar através dela (tinham o mesmo agente) os seus imprescindíveis charutos: Sam Fuller com um charuto na boca tornar-se-ia uma imagem tão icónica como à época o era a do general MacArthur com o seu cachimbo de espiga de milho.

Estas e muitas outras suculentas histórias podem ler em A Third Face (2002), a sua fulgurante e picaresca autobiografia (do ponto de vista literário é como se As Aventuras de Augie March tivessem sido escritas pelo Ring Lardner), livro que nos ajuda a perceber por que falhou The Big Red One (1980), mesmo na mais longa e restaurada versão, obra que atormentou Fuller desde aquele desembarque na Normandia e cuja realização ele perseguiu com a obstinação e energia de um capitão Ahab, bem necessária face à desconfiança da indústria e a inúmeros percalços biográficos. O resultado final, infelizmente, não faz justiça ao artista que a realizou – The Big Red One (1980) não só não é o magnum opus da obra de Fuller como nem se aproxima do topo da lista. O mais interessante, porém, é vermos que o falhanço não derivou de qualquer erro de execução do realizador mas pelo contrário ser uma consequência do seu sucesso na aplicação de princípios éticos que guiaram a elaboração da obra, e do facto de estes se encontrarem em tensão, e por vezes em contradição, com a sua ideia de cinema, evocada no famoso motto: «Film is like a battleground: love, hate, action, death… In one word, Emotion.»

Como soldado da 1ª Divisão de Infantaria americana (The Big Red One), Fuller participou activamente na expulsão decisiva dos Afrika Korps de Rommel no norte de África; na invasão da Sicília (onde também foi fotografado por Robert Capa); no desembarque na Normandia; e, finalmente, na capitulação dos nazis em plena Alemanha. No entanto, na representação cinematográfica das suas aventuras de guerra, Sam Fuller queria realizar um anti-épico. Ele não viu nada de remotamente idealista, heróico ou romântico na guerra. Encontrou apenas instinto de sobrevivência e com ele a necessidade de uma violência insana. Via com desconfiança a celebração de personagens egocêntricos que glorificavam a guerra, como George S. Patton: recusou por diversas vezes realizar o biopic do general, que detestava, tal como recusou trabalhar com estrelas como John Wayne – «See, one thing I hate in Wayne’s war movies is when some officer invariably says, “These men have given their lives for their country.” What bullshit! They didn’t give their lives. Their lives were taken away. They were robbed.» – com medo que ele transformasse os seus argumentos realistas em filmes de aventuras patrióticos. Outra estrela deixada ao largo foi Marilyn Monroe – «too soft; too dream-like» para ser a protagonista de Forty Guns (1957) – embora Fuller lhe estivesse eternamente grato por ela ter acedido a participar num blind date com o irmão do realizador quando este o visitou na Califórnia.

Para a realização de The Big Red One, Samuel Fuller debatia-se portanto com um duplo problema: queria aplicar uma forma a um objecto que não se lhe adequava; e queria realizar um filme com um estilo que lhe era antitético: «War is not about emotions. It’s about the absence of emotions. That void is the emotion of war.» O realizador sensacionalista que elevou a necessidade de gerar fortes emoções a princípio estético; que sempre rejeitou o conforto da tibieza moral; que desconfiava da ironia e desprezava o cinismo; que não tinha paciência para a vaidade melindrada e a reverência ao êxito de Hollywood; o homem que nunca escarnecia das suas convicções nem era leviano nas suas ligações afectivas viu-se confrontado com o irresolúvel problema do seu inabalável carácter sabotar a concretização triunfante da obra de uma vida. Sam Fuller talvez conseguisse a proeza técnica de superar uma incongruência formal, mas não podia ultrapassar-se a si mesmo: «Le style c'est l'homme même

Talvez por isso, apesar de a obra falhar, de assistirmos a The Big Red One sem entusiasmo, sem emoção (sem o mais vago vestígio de uma erecção), reconhecemos no seu gesto falhado a candura de um velho conhecido – e na sua estranha falta de jeito encontramos o sentimental consolo de uma ternura tardia, como se dois velhos amantes se reencontrassem num blind date e ela sorrisse ao recordar-se do tempo em que a ingenuidade e a juventude a fizeram sentir uma Marilyn Monroe, e ele acicatasse a memória em busca de um antigo vigor, perdido mas não esquecido.

Pedro Ramires