Parasitas 

Bong Joon-ho / 2019



Aqui estamos, em 2019. Amanhã, teremos tatuagens electrónicas no antebraço, carros autónomos para viagens, e, ainda ontem, caçávamos animais, na savana, com as nossas setas de pedra talhada. O tempo passa depressa. Mas também devagar, quando nos aborrecemos, às três e vinte da tarde, ou quando a nossa equipa vai ganhando por pouco, perto do final de um jogo importante. E como se não bastasse o combate diário pela sobrevivência, coube-nos em sorte a tarefa suplementar de vigiar o peso da memória, pois não há novidade nenhuma que não incube, em segredo, uma nostalgia futura, uma saudade em formação. Em suma, não somos senhores de nenhum tempo: nem do tempo que governa o corpo, marcando o ritmo do quotidiano, indiferente à nossa vontade, nem do tempo do pensamento, que, por ser tão leve, tanto se lança ao passado como ao futuro. É a nossa maior fraqueza. E o cinema, o truque que inventámos para transformar a dupla derrota numa vitória temporária. Contudo, o sucesso da ilusão depende de muitos factores, alguns directamente ligados a este mundo em permanente e selvagem mudança.

No início dos anos 2000, quando uma larga percentagem de almas já não atravessava um dia que fosse sem falar ao telemóvel ou sem enviar uma mensagem suculenta - apesar do trabalho repetitivo a que o dedo indicador tinha de se submeter para libertar o alfabeto da sua prisão de oito teclas -, o cinema permanecia envergonhado em mostrar os seus heróis na companhia de um Nokia 3330. Eu mesmo tinha sentido algum embaraço ao segurar, em público, o meu primeiro telemóvel, um volumoso AEG, carinhosamente conhecido, na minha família, como “a máquina de lavar”. Regra geral, quando não se podiam encontrar cara a cara, as personagens do cinema ora conversavam usando o telefone de casa, ora recorriam a cabines de rua ou a aparelhos antigos em restaurantes. Apesar de umas quantas aparições em filmes, algumas ainda durante os anos 90, o cinema sério evitava exibir esses novos instrumentos do demónio. Antes da sessão e nas madrugadas de boémia, cada espectador podia palrar ao telefone em qualquer lado, produzir poemas de terceira categoria e depois enviá-los logo, num misto de entusiasmo e arrependimento, mas, nos filmes, as personagens mais depressa escreviam cartas do que perdiam meia dúzia de segundos a fabricar um SMS. Talvez pelo medo de se vincularem a uma forma ainda não cristalizada de comunicação, e pela falta de uma gramática visual adequada à exibição do telemóvel sem que se quebrassem os laços do espectador com a fantasia, eram raros os realizadores que mostravam interesse no objecto e na sua função (não dar sossego às pessoas). O telemóvel não era nem um adereço glamoroso, nem um elemento suficientemente banal para passar despercebido num plano mais fechado. Só em filmes de ficção científica (por exemplo, no Matrix de 1999) se tolerava bem a sua preponderância. Em 2006, durante a projecção do filme The Departed, ainda nos impressionava toda aquela desenvoltura das personagens a tentar mudar o rumo dos acontecimentos à custa de mensagens e telefonemas durante as emboscadas. Era estranho, mas já não tanto. À medida que nos habituávamos a conviver com seres humanos respeitáveis a falar sozinhos na rua e tentávamos arranjar ou resolver problemas amorosos em 70 caracteres, o cinema foi-se sentindo mais confortável em mostrar telemóveis na tela, pois estes tinham deixado de ser apenas uma tecnologia bizarra, passando a desempenhar um papel relevante, e de que maneira, na nossa cultura. Paulatinamente, essa tecnologia foi abandonando o seu lugar periférico, deslocando-se para o centro da narrativa, primeiro com movimentos tímidos e depois com progressivo desembaraço.

Parasitas não será o primeiro filme em que os telemóveis assumem destaque, mas é, por certo, um excelente exemplo de uma forma descomplexada de incorporá-los na história. Logo no início, os dois mais novos dos Kim, uma família sul-coreana de poucos recursos, percorrem as divisões da casa onde moram, de smartphones em punho, em busca do melhor local para navegar à pala do wi-fi dos vizinhos. Que tenham acabado na casa-de-banho, acocorados junto à sanita e a olhar para o ecrã, não nos parece nada exagerado. Numa ou noutra variante, é um episódio que reconhecemos. Mas a cena mais audaz envolve a antiga governanta da mansão dos Park (onde os Kim se foram infiltrando através de uma sucessão de manhas e conluios). Na sequência de uma das reviravoltas da trama, a senhora resolve ameaçar os novos trabalhadores, não com uma arma apontada à cabeça, mas com um telemóvel apontado à cabeça. Bastaria um movimento suspeito, uma aproximação abrupta, para que ela disparasse uma mensagem com um vídeo comprometedor. A ameaça é real e é entendida por todos como real. Há um lado cómico naquela situação, mas o estratagema funciona, cria tensão na sala. Estamos, por fim, preparados para aceitar gangsters que troquem o dedo no gatilho pela exibição intimidatória do botão Enviar. Duas décadas depois, o cinema parece ter encontrado uma linguagem que lhe permite abordar, sem constrangimentos, as facetas mais mundanas da nossa estranha forma de vida. Os telemóveis já não são empecilhos à ficção. Agora sim, podemos sentir, na sala de cinema, o pulsar do nosso tempo. Antes de ele nos fugir de novo, sem um aviso, um telefonema, uma mensagem.

Daniel Marques Pinto