Limitless
Neil Burger/ 2011And that's life, then: things as they are,
This buzzing of the blue guitar.
Wallace Stevens, The Man with the Blue Guitar
This buzzing of the blue guitar.
Wallace Stevens, The Man with the Blue Guitar
Quem nunca, na pausa semanal dos seus afazeres diários, à mesa do café, ao mesmo tempo que emborca o Mint Julep da praxe, deu por si a imaginar um atalho, um golpe de sorte, uma heurística, uma chico-espertice, a silver bullet, que lhe permita libertar-se da pobre modorra repetitiva em que se tornou a sua vida? O que não faria se ganhasse o Euromilhões!, é a música ambiente que em todos os cafés de província acompanha o pôr do sol do fim-de-semana.
Limitless é um filme que namora a ideia, provocatoriamente atraente, de que na verdade, se uma pilulazinha milagrosa aumentasse a nossa capacidade cognitiva durante um período limitado de tempo, a nossa maior preocupação não seria escrever as obras-primas da literatura que ad-eternum sentimos a incubar em nós – parir com rapidez um livro aceitável satisfaria essa edificante ambição – mas elaborar um esquema que nos permitisse viver até ao fim dos nossos dias como se tivéssemos ganho um ou vários Euromilhões. E não porque resolver de vez o aparente obstáculo e derradeiro bode expiatório (ter de ganhar a vida) que teima em figurar entre nós e o afirmar da nossa vocação criaria o contexto ideal e seria estímulo suficiente para o nosso intelecto produzir a marca cultural a que o julgamos predestinado; a conclusão é outra: uma vida abastada colocaria a literatura no devido seu lugar, o de meio para o sucesso material e reconhecimento social. Atingido o fim, o meio torna-se supérfluo, decorativo.
Edward Mora (Bradley Cooper), um escritor falhado, deprimido, falido, mas cheio de opiniões fortes sobre como ultrapassar o hiato entre o seu evidente fracasso e um eventual sucesso (full of shit), ao ponto de ser abandonado pela única pessoa que ainda o aturava (a namorada), chegou ao fundo do túnel – and there was no light there. Ao longo de hora e meia, uma droga experimental e as suas consequências transformarão um intelectual urbano-depressivo num yuppie com ambições políticas. (De notar que a ex-namorada, impressionada, volta. Uma vida estruturada e dinheiro no bolso. Voilá!) O seu mentor e antagonista é um Robert De Niro qua guru da especulação financeira. Há vários dramazinhos pelo meio. Nada faz muito sentido.
O filme de Neil Burger, cuja premissa é um antigo e infundado cliché (apenas usamos uma pequena percentagem do cérebro) que se tornou um especulativo mito popular (seríamos muito mais inteligentes se utilizássemos uma maior parte do cérebro), é indescritivelmente mau, um cocktail de smoking guns narrativos, vícios técnicos (a habitual gimmick de efeitos especiais, uma câmara a sofrer de Parkinson terminal e banda sonora escolhida por uma associação de otorrinos com medo de perder a clientela) e a mais básica demagogia conspirativa (não se alcança o sucesso sem a fix in the game). Porém, é também um filme que subliminarmente questiona a caridosa noção de vocação, algo que é suposto sobreviver à ausência de resultados, uma espécie de prima do famigerado talento, a praia em que encalham e morrem todos os peixes que sonharam um dia caminhar.
A vocação como último refúgio da nossa inconsequência é uma bela cantiga, mas acorde a acorde, ano após ano, começa a ser dominada pelo the buzzing of the blue guitar, life as it is, things as they are. A vida prática escancara-nos uma oportunidade, caída do céu, irrecusável, e quem pode afirmar que não daria por terminada a demanda, voltando para casa?
Time in its final block, not time
To come, a wrangling of two dreams.
Limitless tem o mérito de amplificar o buzzing of the blue guitar.
E vale somente por isso.
Pedro Ramires