The State of Things 

Wim Wenders / 1982



I was like David Malouf’s imagining of Ovid in his banishment: infantilized by exile.

Hisham Matar

Algures entre os Pimms iniciais e o Kümmul final, numa festa em casa do produtor de cinema e argumentista Ivan Moffet (A Place in the Sun, The Great Escape, Giant; amante de Caroline Blackwood – a musa de Lucian Freud – e de Elizabeth Taylor), a HRH princesa Margaret, afectando ignorância, perguntou à famosa modelo, actriz e cantora Lesley Lawson qual o seu nome. Esta respondeu Lesley e acrescentou: But my friends call me Twiggy, ao que a princesa observou: How unfortunate.

Também em Londres, Arnold Deutsch, o sobrinho comunista do fundador da cadeia de cinemas Odeon (Oscar Deutsch), reunia-se em bancos esconsos do Regent's Park com o jornalista e futuro espião britânico Kim Philby com o objectivo de o recrutar como espião soviético, algo que alcançou antes de desaparecer nos calabouços da Lubianca durante as grandes purgas estalinistas dos anos 30. Arnold Deutsch era um entusiasta da sex-politics do sociólogo alemão William Reich, que julgou ter descoberto na frustração sexual da pequena-burguesia a fonte do ressentimento que a atraía para o fascismo. 

Por outro lado, imaginem que os arranha-céus de Miami Beach tinham sido construídos por Pablo Escobar e semelhantes kingpins com o dinheiro do tráfico de cocaína, substância que os EUA tinham proibido, mas que a Colômbia, enviando a sua poderosa armada, impôs pela força a um estado soberano para proteger os interesses comerciais dos seus traficantes. Se trocarmos Miami Beach pela baía de Hong-Kong, cocaína por ópio, EUA por China e Colômbia por Reino-Unido, foi grosso modo o que aconteceu na primeira metade do séc. XIX.

Para concluir, o escritor Hisham Matar publicou dois belíssimos romances, mas foi o relato comovente, poético e furioso da sua inquebrantável busca pela verdade em relação ao paradeiro do seu pai, um intelectual líbio no exílio, raptado no Cairo pelos sicários de Gaddafi com a cumplicidade dos serviços secretos egípcios, que o catapultou para a fama. Foi em The Return que li a epígrafe deste texto e também me interroguei: não terei sido, eu mesmo, infantilizado pelo exílio?

Revi o filme de Wim Wenders – um meta-filme, na verdade: retrato do estertor agonizante do cinema Indie, com Samuel Fuller a fazer de éminence grise e símbolo da impotência e decadência do cinema-arte perante o cinema-indústria – e percebi que a minha pele se tinha tornado impermeável à melancolia e ao pessimismo de um certo cinema independente que tanto me chegou a dizer. Há menos de uma década ter-me-ia deprimido; hoje, as tentativas de reflectir sobre o filme invariavelmente me levam para a lista infinita e muito cómica de comentários mordazes (quase sempre irónicos, cínicos, cruéis) que tornaram famoso o snobismo e temperamento irascível da irmã da rainha de Inglaterra – que, exactamente por isso, era tão temida como cobiçada –; para frases memoráveis de espiões agora esquecidos: Guy Burgess escreveu que Moscovo nos anos 60 era like Glasgow on a Saturday night in Victorian Times; para a ingerência dos grandes impérios (a húbris estonteante do britânico acima de todos) na política interna chinesa no séc. XIX; para a tragédia dos beduínos líbios no séc. XX, primeiro às mãos do colonialismo italiano, depois às mãos de um facínora. Por outras palavras, o contacto com o destino sombrio do cinema independente não me impede de voltar incólume e excitado para os meus livros, esses sim o centro da minha atenção.

De onde vem esta indiferença? Como é que as coisas chegaram a este estado?

A certa altura, uma personagem do filme diz: Life without stories is not worth living. Mas talvez seja essa a causa do meu escapismo: ao contrário da minha relação com outras artes, a minha relação com o cinema foi-se tornando superficial: relativa indiferença face à sua prática; vontade apaixonada de imitar a arte na vida. A meditação sobre a precariedade do cinema, o seu passado e futuro, as condições materiais para a sua realização, as suas crises e evolução, todos esses espectros e dilemas são muito interessantes, mas não são da ordem da paixão. Stories! Eu sei, o tema do filme é precisamente apontar quão mais pobre seria a nossa vida sem o cinema: o bom cinema, que nos guia, nos interroga, nos inspira. Mas não estou para grandes profundidades: quero romance. Telenovela? Bring it on!


Pedro Ramires